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Paulo Sales
Publicado em 22 de março de 2021 às 05:00
- Atualizado há um ano
Pudim me olha e eu retribuo o olhar. Estamos deitados na cama. Há algo de muito terno na maneira como ele me observa. Por vezes, penso que dentro daquele cachorrinho de compleição frágil há o espírito de alguém que gostava de mim. Meu pai, quem sabe. Ou talvez algum antepassado que não me conheceu e regressou ao mundo para me alegrar e fazer companhia. Mas logo volto à razão: Pudim é apenas Pudim, um pequeno animal que eu adoro, e isso me basta.
Mesmo sendo um ateu convicto desde a adolescência, nutro certo pendor para o sagrado, o celestial, as coisas invisíveis e insondáveis. Porque, sem eles, a vida real torna-se um troço ainda mais duro de carregar. Em boa parte da vida desempenhamos o papel de Sísifo, carregando a pedra até o cume de uma montanha, para em seguida vê-la rolar morro abaixo. Sobra a crença – inalcançável, no meu caso – de que algum dia seremos redimidos desse trabalho penoso.
Guardo reminiscências de um tempo em que o sobrenatural me assombrava. A criança introspectiva que fui, folheando atemorizada os desenhos da Bíblia Ilustrada que tínhamos em casa, até hoje conservada por minha mãe: demônios vermelhos, pessoas jogadas ao fogo, bebês cortados ao meio. O fascínio nascia dos anjos, aqueles seres alados meio etéreos, que inculcaram em mim o sonho primevo de voar. Já mais velho e descrente, escrevi pequenos contos protagonizados por anjos atormentados e demônios incapazes de praticar maldades.
Havia as conversas com os primos vindos do interior sobre almas penadas, que me faziam ter pesadelos. Havia o sentimento mudo de pavor ao entrar em uma sala da Igreja do Bonfim na qual pernas e braços pendiam do teto, como membros amputados em louvor a Deus. Outro dia voltei a essa sala e as pernas e braços continuam por lá, assustadores. As missas me entediavam. Eram um suplício a que minha mãe, com a melhor das intenções, me submetia. As frase me soavam incompreensíveis, a liturgia me era indiferente.
Se perdi de vez uma fé que nunca tive, permaneci cultivando o fantástico na literatura. García Márquez me fascinava: a estirpe dos Buendía, condenada a cem anos de solidão. A jovem Remédios, que subia aos céus. Estevão, o descomunal afogado mais bonito do mundo. O senhor muito velho com suas asas enormes. O amor tantas vezes adiado entre Florentino Ariza e Fermina Daza.
Depois veio Borges, e com ele a certeza de que “a máquina do mundo é complexa demais para a simplicidade dos homens”. Contos como O Aleph, O Milagre Secreto ou Funes, o Memorioso abriram clareiras em minha mente. Tanto Gabo quanto Borges deixaram em mim uma forma muito peculiar de refletir sobre a existência, impregnada de uma abstração que ainda hoje me acompanha. Motivada, provavelmente, pelo singelo e inútil desejo de entender por que precisamos ir embora da vida.