Quando nações viram ruínas

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  • Paulo Sales

Publicado em 23 de outubro de 2022 às 05:00

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Há, no parque em que caminho todos os dias com meu cachorrinho, uma estrutura de cimento tomada pela vegetação. Parece ter sido um banco em outros tempos, quando o parque nem existia. Está tombado e inclinado, como uma estátua arrancada à força de um pedestal. Sempre que passo por ele, imagino como teria sido em seu apogeu. Casais apaixonados ou senhoras exaustas devem tê-lo usado para namorar, descansar ou contemplar as árvores. Gente que talvez nem exista mais para atestar a serventia desse banco no passado.

Há algo nas ruínas que me fascina e me atemoriza. O seu estado de abandono, de absoluta solidão. São testemunhas da nossa brevidade e ao mesmo tempo da permanência das coisas que edificamos. Comprovam, em seu lastimável estado de decomposição, a presença de quem esteve por aqui bem antes de nós. Como uma casa abandonada e decrépita que vejo sempre, ao passar pela orla de Amaralina. Escurecida pela fuligem, escorada sabe-se lá como para não desabar. Em algum momento ela abrigou famílias possivelmente abastadas, que então veraneavam em frente ao mar.

Essas são as pequenas ruínas. E quanto àquelas que alcançaram a imortalidade, como o Coliseu, o Foro Romano e as Termas de Caracala em Roma? Restos grandiosos de tempos de fausto e bonança, são uma enorme celebração da nossa impermanência, como indivíduos e também como civilizações. Quando caminhei por esses lugares, me senti um reles liliputiano esmagado pela mão invisível dos séculos. Os gritos de dor dos gladiadores, o prazer esquecido dos frequentadores dos banhos públicos, hoje uma evocação que faz pairar espectros acima de nós.

Assim como os lugares, penso que também certas pessoas tornam-se ruínas em algum momento da vida. Desvirtuam-se do que foram, adquirindo um aspecto de decadência sóbria. Às vezes, me vejo diante de uma delas. Alguém que conheci um dia e que só reconheço pelos contornos do rosto ou por um cacoete na fala. O interior está oco, despido daquilo que admirávamos ou estimávamos. Ou pior: foi substituído por estruturas feitas com matérias-primas de má qualidade, como o embrutecimento e o emburrecimento. O diálogo torna-se impossível, a convivência idem.

E, assim como certos lugares e certas pessoas, também certas nações podem se converter em ruína. Em algum momento da história, forças poderosas passam a exercer uma pressão insustentável sobre os pilares em torno dos quais se construiu um país: sua cultura, sua constituição étnica, suas singularidades, seu idioma, seus valores até então inalienáveis. É como uma infestação de cupins: corrói por dentro, aos poucos. Desvirtuando amplos setores da sociedade. Dizimando a inteligência e a substituindo por convicções assentadas em areia.

Já vimos, ao longo da história, países virarem pó, como o império de areia de Ozimândias no poema de Shelley. Em alguns casos, é possível recuperar a duras penas as estruturas, retomar o prumo, revitalizar o que havia soçobrado. Transformar aniquilação em reconstrução, retrocesso em avanço. Em outros casos, esse processo não se torna mais possível. A corrosão é enorme e o que permanece é só o invólucro envelhecido e envilecido, condenado à queda.

Receio que em breve teremos um enorme e disforme Coliseu no lugar de um país outrora pujante, embora desigual. Vibrante, embora brutal. Singular e plural a um só tempo. Um país que vê suas entranhas ruírem. Como vimos em outros tempos a Alemanha ruir, dizimada pela paranoia delirante de um ditador demente. E que por um milagre rebelou-se contra a sina de ser ruína após a destruição da Segunda Guerra. Ah, Marx, como você estava certo quando disse que a história se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Ah, Caetano, como você estava certo quando disse que aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína. Triste é o adoecimento moral, a implosão deliberada, o flerte alegre com o caos.

Temo em me ver envolto por toneladas de poeira e entulho, abjeção e intolerância, truculência e insensatez. E o pior: impossibilitado de recorrer ao exílio. Contemplando as paredes da sociedade onde nasci se desintegrarem à minha frente e me entregando à apatia e à resignação, sem me importar mais com nada. Como na clássica canção Ol’ Man River:  “Esse é o velho que eu não quero ser. O que importa a ele se o mundo tem problemas? O que importa a ele se nosso mundo não é livre?”.