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Sobre livros, lembranças e temores

  • Foto do(a) author(a) Paulo Sales
  • Paulo Sales

Publicado em 26 de setembro de 2022 às 05:04

. Crédito: .

Avanço como um bicho-preguiça sobre A Montanha Mágica. As aventuras alpinas de Hans Castorp e seus companheiros de infortúnio não encontram eco no meu imaginário. É um romance enfadonho esse de Thomas Mann. E o peso do volume de mais de mil páginas se faz sentir nos meus braços, tornando a leitura um exercício também físico, como uma musculação feita à base de palavras, frases e divagações em profusão. Mas sei que chegarei ao cume.

A leitura morosa, muitas vezes emperrada, talvez seja fruto de causas externas à pura contemplação literária. A Montanha Mágica não me absorve como deveria porque não consigo me manter suficientemente alheio ao que me cerca. Vivemos um daqueles períodos históricos cruciais, que podem nos arrastar de vez ao abismo ou, espero, nos permitir uma espécie de retorno à normalidade. Podermos esboçar um tempo com menos armas, menos bravatas, menos devastação e menos estupidez.

Como manter a cabeça num sanatório para tuberculosos na Suíça do início do século 20 se, em plena terceira década do século 21, o Brasil ferve como uma febre? Castorp, seu primo Joachim e o amigo humanista Settembrini me soam quase incompreensíveis com suas discussões intermináveis. Como o herói de Mann, sou também um “filho enfermiço da vida”, tentando apreender com um mínimo de sensatez um panorama que é o mais puro suco de caos.

Mudo de assunto. Antes de iniciar a escalada rumo à montanha, li um livro de Stefan Zweig que me levou de volta à infância. Chama-se Fernão de Magalhães – O Homem e a sua Façanha e reconta a vida do sujeito que empreendeu a primeira viagem de circunavegação da história. Essa simpática biografia, que me foi emprestada por um amigo, dialoga estreitamente com um pequeno livro que me fascinou na minha aurora.

Devia ter uns 10 ou 11 anos quando li pela primeira vez (foram várias) Viagem ao Mundo Desconhecido, de Francisco Marins. Tenho até hoje esse livro e o folheio agora. Foi um presente de dois primos, como atesta a breve dedicatória. Apesar das páginas puídas, ele está bem-conservado. Uma pequena preciosidade da minha infância que, como tantas outras, faço questão de guardar. Ele conta, de forma didática e com alguns desenhos muitos bem-feitos, a mesma aventura do livro de Zweig.

Foi curioso perceber como, ao ler este último, as reminiscências vieram naturalmente. Recordava os nomes das cinco naus que partiram do território espanhol rumo à América do Sul, em busca de uma passagem para as Índias. Recordava até mesmo os nomes de alguns dos personagens reais que acompanharam Magalhães nessa missão que, a despeito de tê-lo alçado ao Panteão dos grandes homens do seu tempo, acabou por matá-lo.

Lembro de comentar com colegas de colégio a respeito do livro e receber em troca apenas indiferença e incompreensão. Não tinha amigos nessa época, e só fui tê-los na segunda metade da adolescência. Padecia, portanto, de uma incipiente solidão intelectual. Meu pequeno mundo de garoto ensimesmado estava envolto em uma redoma. E o meu entusiasmo com a leitura não era compartilhado, sequer entendido. Ricocheteava e voltava para mim.

Esse livrinho foi uma das primeiras centelhas que acenderam em mim o desejo de desbravar o planeta. Eram outros tempos, nos quais a possibilidade de uma viagem para fora do Brasil, ou mesmo um intercâmbio, eram impensáveis para uma família de classe média como a minha. Bem, hoje voltaram a ser. Mais um dos muitos efeitos danosos desse mundo exterior que atravanca o caminho da minha leitura e infesta a minha mente de apreensão e temor.

Não quero ser como aquelas pessoas que, já na metade final da vida, acabam tragadas pela História. Como aqueles velhos judeus que abandonaram suas casas sem sequer recolher pertences e economias, na Europa pré-Segunda Guerra. Ou os velhos sonhadores que viram seus ideais murcharem enquanto permaneciam miseráveis na Cuba dos anos 90. Enfim, que venham dias melhores. E que venham logo.