Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Osmar Marrom Martins
Publicado em 1 de julho de 2025 às 11:22
Ainda quando cursava faculdade, o baiano Nell Araújo, 37 anos, nascido e criado na comunidade da Gamboa de Baixo, resolveu encarar o mundo de frente, mesmo sabendo que iria encontrar dificuldades e preconceitos por não ter nascido num bairro nobre, ser preto e homoafetivo. Nada disso o inibiu. Que nada, ele se jogou. >
Ex- estagiário de Marketing e Promoção na Bahia FM, foi estudar no Canadá, precisamente em Vancouver, e voltou ainda mais preparado. Há dez anos, ele dirige o Teatro Jorge Amado, na Pituba, que mantem ativo mesmo, com poucos recursos e pouco apoio. Esse mesmo teatro (onde funciona o projeto Teatro Escola) que quase fecha as portas, só não ocorreu porque, Nell e sua equipe, resolveram enfrentar os desafios e manter funcionando um importante espaço cultural da cidade que homenageia nosso maior escritor. >
Em conversa com o CORREIO, Nell Araújo falou um pouco de sua vida, das dificuldades, de sua condição de homem preto, pobre e homoafetivo, mas que chegou lá com muita luta e perseverança. E mandou conselho para jovens que, assim como ele, também querem encontrar seu espaço >
"Persistam. Sigam enfrentando, resistindo. Porque o sistema nunca vai nos permitir chegar com facilidade — é um sistema racista, excludente, feito para nos deixar de fora".>
CORREIO - Quando você olha para trás, o que lhe passa pela cabeça sobre como um jovem preto, homoafetivo, nascido e criado na comunidade da Gamboa de Baixo conquistou seu espaço no meio artístico e cultural, sendo há dez anos gestor do Teatro Jorge Amado?>
NELL ARAÚJO - Quando olho para trás, penso na potência da caminhada que me trouxe até aqui. Um jovem preto, homoafetivo, nascido e criado na comunidade da Gamboa de Baixo, que hoje celebra 10 anos à frente da gestão do Teatro Jorge Amado. Não é em vão. Minha resistência, minha luta, minha existência, transformaram esse teatro em um verdadeiro símbolo de resistência e afirmação. >
Não é por acaso que, hoje, dentro do Teatro Jorge Amado, pulsa um dos principais projetos de arte e educação de Salvador — o Teatroescola. Esse projeto carrega minha essência, minha história, minha vivência como homem preto e LGBT. Ter chegado até aqui e não ocupar esse lugar com toda a minha trajetória, seria muito pouco. >
O que construo hoje no campo da cultura não é só resultado de competência técnica — é também fruto de uma experiência de vida marcada pela superação, pela coletividade e pelo desejo de mudar realidades. E é com essa bagagem que venho contribuindo diretamente para as políticas públicas e para o fortalecimento do setor cultural e artístico em Salvador. Porque eu sou fruto da base, e sigo fazendo pela minha comunidade, a luta para democracia no campo cultura não pode ser individual, a nossa luta é coletiva!>
CORREIO - Durante essa caminhada, você sofreu algum problema de racismo e de homofobia? >
NELL ARAÚJO - Marrom, é impossível dizer que eu nunca sofri racismo. Meu corpo preto carrega diversos atravessamentos — sou gay, venho de uma origem periférica. O racismo que mais me atravessa no dia a dia está nos olhares. A maneira como me olham diz muito. Mesmo falando de Salvador, da Bahia, da cultura, da gestão, quando se pensa em liderança ainda se imagina um homem branco, cis, padrão.>
E aí eu chego com a minha estética, com a minha verdade, com minhas roupas que afirmam minha ancestralidade, com minhas escolhas que valorizam minha negritude. Faço questão de reforçar minha identidade cultural e minha origem, porque isso é parte da minha força. Para alguns, isso ainda é chocante. Para mim, é um ato de afirmação.>
Mais do que resistência, minha estética é uma forma de me preservar, de proteger quem eu sou de verdade. Não é à toa que hoje, quando se fala de mim, quando se fala de Nell, existe um símbolo. O meu cabelo black, a minha estética, a minha risada — tudo isso carrega identidade. Acredito que hoje, quando as pessoas ouvem meu nome, já constroem um imaginário sobre mim. E isso é muito bonito. Porque eu nunca quis perder minha essência: a essência do menino da Gamboa que sonhava em chegar longe, mas sem abrir mão de onde veio. >
Não é fácil viver o racismo todos os dias, mas eu escolhi enfrentá-lo afirmando quem eu sou. Escolhi valorizar minha estética, minha ancestralidade, minha história. E sei que essa escolha me dá força para continuar. Porque o que construí até aqui não foi em vão. Hoje eu sou referência para outros que estão chegando — jovens pretos, periféricos, LGBTQIAPN+ — e isso me dá ainda mais responsabilidade. Meu corpo e meu trabalho dizem quem eu sou. E eu sigo fazendo questão de ressaltar, todos os dias, quem é o Nell de verdade.>
CORREIO - Conte um pouco dessa sua caminhada desde estagiário de Marketing e promoção na Bahia FM, enquanto cursava faculdade.>
NELL ARAÚJO - Minha primeira porta para o mundo artístico se abriu ainda na faculdade, quando comecei a estagiar no setor de marketing e promoção das rádios da Rede Bahia. Foi ali, na Bahia FM, que tive meu primeiro contato direto com o universo da comunicação cultural, convivendo com uma rede de jornalistas, produtores, artistas e comunicadores que, sem saber, estavam me apresentando o terreno onde eu construiria minha trajetória. >
Naquele momento, eu jamais imaginava que anos depois estaria assessorando grandes nomes da cena artística nacional, atuando como relações públicas e assinando a produção de eventos culturais de grande impacto. Mas foi ali que tudo começou — nos bastidores do rádio, observando, aprendendo e sonhando alto.>
Aquele ambiente me ensinou a importância da escuta, da estratégia e do trabalho coletivo — lições que carrego até hoje como gestor cultural. Olhar para trás e ver esse percurso me emociona, porque sei o quanto precisei insistir, me reinventar e acreditar que, sim, era possível ocupar esses espaços com a minha identidade, a minha história e os meus valores.>
CORREIO - Como se deu sua ida para Vancouver no Canadá e o que você aprendeu por lá?>
NELL ARAÚJO - Quando falo do Canadá, falo de um divisor de águas na minha vida. Foi a realização do sonho de um menino preto da Gamboa, que sempre quis conhecer o mundo — e que, pela primeira vez, saía do Brasil. Estudar Inglês e Cultura em um país como o Canadá me proporcionou uma visão ampliada sobre acesso à cultura, sobre educação pública de qualidade, sobre dignidade. E foi lá que eu comecei a me questionar: por que, no meu território, no meu país, o meu povo não tem o mesmo acesso? Por que a desigualdade ainda estrutura a vida da população preta, indígena e LGBTQIAPN+? >
Aquele tempo no Canadá me impulsionou a realizar um dos maiores sonhos da minha vida. Porque quando eu tinha 12 anos, minha avó, Marrom, me deu um ingresso para assistir a uma peça de teatro — e aquele momento mudou tudo. Foi ali que o teatro entrou na minha vida como caminho e como missão. E olha que não é por acaso que, hoje, sou gestor de um dos principais teatros da cidade de Salvador. Isso tem a ver com ela, com minha avó, com o que ela plantou em mim. >
No Canadá, tive contato com um país cosmopolita, com políticas públicas funcionais, com respeito à diversidade. Voltei com regra e compasso para aplicar esse aprendizado no meu território. E é por isso que hoje, através do Teatroescola, atuo no campo da cultura e da educação com o compromisso de construir uma escola afrocentrada, pública e de qualidade — uma escola que aproxima a juventude da arte, promove dignidade e afirma nossas identidades. >
A experiência internacional me deu coragem, visão e método. Mas foi minha ancestralidade que me deu propósito. E é isso que sigo fazendo: transformar minha cidade com as ferramentas que a vida e minha história me deram. >
CORREIO – Acompanho sua luta diária para manter o Jorge Amado sempre com atividades. Qual o segredo de lutar contra pouca verba, falta de apoio, entre outras coisas? >
NELL ARAÚJO - O meu segredo de luta, primeiramente, é a resistência.>
Manter um espaço como o Teatro Jorge Amado ativo, com poucos recursos e pouco apoio, exige resiliência — algo que aprendi com meu avô e que a vida me ensinou a cultivar. Minha sensibilidade também me ajuda a me enraizar e não desistir.>
Porque, num país tão racista como o nosso, sem resistência eu sequer estaria ocupando esse lugar. >
Todo dia busco aprender novas estratégias e criar articulações que fortaleçam não só Salvador, mas também o nosso povo em rede, no Brasil e fora dele. O que me move são articulações que façam sentido, que ajudem a impulsionar a cultura negra, e é isso que estou fazendo agora em Parintins — construindo pontes para que nossa cultura negra em Salvador continue viva e valorizada. >
Ser um gestor negro é desafiador, mas eu sigo acreditando no poder do coletivo. Meu foco é abrir caminhos para que mais pessoas pretas e indígenas ocupem os espaços culturais da cidade — como público e como líderes. Esse é meu compromisso. Essa é minha luta diária.>
CORREIO - Ao longo desses anos você enfrentou alguma dificuldade que o fez até pensar em desistir de seus sonhos e da gestão do teatro?>
NELL ARAÚJO - vontade de desistir? Sempre. Há momentos em que ela bate, forte. Mas aí eu paro e lembro da minha trajetória. Lembro do que a cultura me possibilitou — porque foi ela que me deu dignidade. Foi a arte que me formou, que me construiu como pessoa. Foi através dela que conheci outras cidades, outros países, e descobri o que eu faço de melhor: gerir.>
E sim, a vontade de desistir volta e meia aparece, porque eu escolhi trabalhar num segmento onde desistir não é uma opção. A cultura, infelizmente, ainda vive cercada de precariedade, falta de apoio, escassez de incentivos. Mas mesmo assim, há 10 anos, estou à frente do Teatro Jorge Amado, trabalhando todos os dias com minha equipe para manter aquele espaço vivo, pulsando pela cidade e para a cidade.>
Não é fácil. Sem patrocínio, às vezes parece impossível. Mas seguimos. Como diz o ditado popular, muitas vezes é *vendendo o almoço para colocar a janta na mesa. E mesmo assim, a gente não para — porque acredita que a arte transforma, e que o nosso povo merece acesso, dignidade e beleza.>
CORREIO – Fale um pouco desse seu projeto Teatroescola, que é a menina dos seus olhos.>
NELL ARAÚJO - sem sombra de dúvida, o Teatroescola é a menina dos meus olhos. Ele nasceu de um sonho — um sonho que carrego desde menino, que une tudo em que acredito: arte, educação, pertencimento e transformação social. Esse sonho começou ainda na Gamboa, quando minha avó, com todo esforço, me deu um ticket para ir ao teatro pela primeira vez. Ali, muito pequeno, eu percebi duas coisas: o quanto aquele momento foi transformador para mim e o quanto era inacessível para muitos dos meus amigos. Desde então, me prometi que lutaria para que mais crianças e jovens pudessem viver essa experiência.>
Hoje, eu tenho orgulho de dizer que o Teatroescola é uma referência no Brasil. Uma escola que oferece formação artística de base para jovens negros, indígenas, periféricos e surdos. Uma escola que acredita na acessibilidade como direito e que propõe uma linguagem diferenciada nos seus processos formativos. Mais do que ensinar teatro, formamos lideranças culturais, jovens protagonistas que ocupam espaços, criam projetos e movimentam territórios. Com nossos prêmios e reconhecimentos, provamos que é possível construir um projeto sério, comprometido, e ao mesmo tempo profundamente afetivo.>
Já formamos mais de 800 jovens em Salvador, e seguimos firmes com nosso foco: ser uma política pública viva, que enfrente os dados alarmantes sobre o acesso da juventude negra à arte e à cultura. O Teatroescola não é só um espaço de ensino. Ele é um espaço de pertencimento. É onde a juventude negra, indígena, LGBT+ pode se ver, se reconhecer e se projetar como referência.>
Como eu sempre digo na sala de aula: "Quero olhar para o lado e ver muitos como eu nesse caminho — corpos pretos, indígenas, LGBTQIAP+, atuando, ocupando, sendo referência para a cidade e para o país." >
CORREIO - Que conselho você daria para jovens negros e negras que querem seguir na cultura?>
NELL ARAÚJO - O primeiro conselho é: persistam. Sigam enfrentando, resistindo. Porque o sistema nunca vai nos permitir chegar com facilidade — é um sistema racista, excludente, feito para nos deixar de fora. Mas a gente tem algo muito mais poderoso: resiliência, força e ancestralidade. Acreditem nisso. E, acima de tudo, busquem o conhecimento. Porque o conhecimento é libertador. Eu jamais faria o que faço hoje como gestor cultural se não tivesse buscado os estudos.>
Para mim, a educação é a principal arma que temos para transformar a nossa realidade. Eu entendo que cada jovem vive uma realidade diferente — como foi para mim, será diferente pra você. Mas é essencial que a gente abra portas, bote o pé, reforce a nossa presença e, principalmente, conheça a nossa própria história.>
Quando eu resolvi olhar para quem eu sou, entender a minha cultura, minhas raízes, a forma como eu via o mundo mudou completamente. E é por isso que digo: conheça mais sobre você. Reafirme quem você é, todos os dias. É assim que a gente constrói trilhas, caminhos — para nós e para os que vêm depois. >
E para quem deseja se lançar no mundo da cultura, eu sempre digo: não pense só em trabalhar. Pense em construir um legado. Trabalhar passa. O legado fica. Eu não acordo pra bater ponto — eu acordo pra transformar realidades. >
Se cada um de nós entender que pode deixar uma marca no mundo, vamos conseguir mudar esse sistema que insiste em nos apagar. Vamos pensar diferente. Vamos caminhar juntos. Vamos fazer essa grande retomada.>