rafson ximenes

‘Com Bolsonaro, os abusos não parecem ser erros, mas programa e método de governo’, diz defensor

Sobre indulto individual de Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira

  • D
  • Da Redação

Publicado em 22 de abril de 2022 às 10:36

. Crédito: .

(Foto: Divulgação) Outro ato inesperado do presidente Bolsonaro causou espanto e preocupação ao país. Em pleno feriado de Tiradentes, ele concedeu indulto individual, ou graça, ao deputado Daniel Silveira, que menos de 24 horas antes fora condenado pelo STF a mais de 8 anos de prisão pelos crimes de coação no curso do processo e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União. Para melhor compreensão do alerta, voltaremos um pouco no tempo.

Em 2009, chegou à Defensoria Pública da Bahia a situação de um homem de 28 anos, que havia sido preso, com decisão já transitada em julgado, acusado de ter roubado uma bicicleta e, uma semana depois, um iogurte. Foi apanhado enquanto ainda bebia o laticínio. Era a madrugada seguinte ao seu aniversário de 18 anos. Logo a seguir, foi posto em liberdade e não soube mais nada do processo. Passada uma década, levava uma vida ordeira, trabalhava, e nunca mais se envolvera com qualquer delito, quando foi surpreendido com o mandado de prisão para cumprir pena. 

Além do paradoxo de se prender alguém por pequenas infrações, após uma década de vida conforme as regras, o leitor mais atento deve ter percebido um detalhe que a Justiça ignorou na época. Se o crime famélico ocorreu no dia seguinte à maioridade e a bicicleta fora subtraída uma semana antes, ele não podia ser punido como adulto por ser ainda adolescente. Só restava o caso do iogurte. Foi pedida a revisão criminal, mas, diante da demora na resposta e a angústia pela pena, a Defensoria tentou obter uma das primeiras “graças” da república. É evidente que esta situação era mais consentânea com os objetivos do perdão presidencial que a do deputado. 

Existe um trâmite para esse pleito, definido na Lei de Execução Penal. Primeiro, o pedido passa pelo Conselho Penitenciário e, apenas com o seu parecer, é encaminhado à Presidência. Evidentemente, esse rito não foi observado no caso de Daniel Silveira. No caso do iogurte, o conselho foi favorável ao perdão de forma unânime. Então, pleito foi encaminhado à presidência, que delegou a análise à Casa Civil. Me desloquei pessoalmente à Brasília e conversei com um assessor da então ministra que disse algo como “ sabemos que a situação é grave, mas temos muita preocupação com a possibilidade de o STF entender que avançamos no seu espaço”.

Apesar da nossa insistência, a Casa Civil ainda encaminhou o processo ao Ministério da Justiça, que por sua vez o repassou ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP)... e nesse meio tempo o Tribunal de Justiça baiano deferiu a revisão criminal, tornando o indulto individual desnecessário, porque, felizmente, seu objetivo foi cumprido sem ele.  Até hoje tenho certeza de que o pedido deveria ter sido deferido de plano após o respeito ao rito legal, mas o que chama atenção aqui é a postura de respeito à institucionalidade. Certo ou errado no mérito, Lula em 2009 queria evitar uma crise. Certo ou errado no mérito, Bolsonaro em 2022 quer criar uma crise. 

Desde a redemocratização, todos os presidentes respeitaram o tratamento constitucional dado a cada instituição e evitaram tensões, exceto Bolsonaro. É verdade que o atual presidente não foi a primeira autoridade a desrespeitar ou tentar invadir a esfera alheia. Antes do seu governo, o STF impediu a nomeação de um ministro, o Congresso Nacional aplicou um impeachment sem que houvesse qualquer crime de responsabilidade, isso sem falar em todos os abusos da Operação Lava Jato, ou nos casos esporádicos de governadores que se recusaram a cumprir texto constitucional e aceitar que a Defensoria Pública é autônoma. Espero que todos reconheçam os erros, pois são o embrião do grave problema que vivemos.

Com Bolsonaro, porém, a crise chegou a limites jamais previstos. Os abusos não parecem ser erros, mas programa e método de governo. Desde o início da pandemia, não cansa de mentir sobre uma decisão do STF a respeito da competência compartilhada por União, estados e municípios na gestão da saúde. Não foram poucas as vezes em que atacou governadores. Faz notória confusão do público e privado ao falar do exército e da polícia. Incentivou as pessoas a se armarem para “resistir” e desobedecer normas estaduais. Fez questão de desobedecer ostensivamente as mesmas normas. Sem qualquer base fática, colocou repetidamente em dúvida a segurança das urnas eletrônicas e mentiu sobre o procedimento de apuração eleitoral. Fez comícios e “lives” no dia 7 de setembro xingando ministros do STF, TSE e afirmando que não cumpriria qualquer decisão deles.

Agora, Bolsonaro concedeu em tempo recorde indulto individual a um deputado que, assim como ele, ofendera e ameaçara os magistrados. O parlamentar, aliás, ficou famoso por fazer uma simbólica ode ao homicídio, ao quebrar uma placa que homenageava a vereadora Mariele Franco, assassinada meses antes. É outra semelhança com o presidente, que ganhou notoriedade enquanto deputado por defender tortura, grupos de extermínio e execuções na ditadura militar. É óbvio que o perdão presidencial, neste caso e desta forma, antes mesmo de ser publicada a decisão, não foi uma defesa da liberdade, nem teve razões humanitárias ou de política criminal. Foi uma grotesca e acintosa provocação. Ou alguém acha razoável que com tantas pessoas presas porque passavam fome, um deputado que incita violência física contra ministros seja o maior merecedor de clemência?

Aqui não se trata de uma discussão jurídica. O indulto individual é prerrogativa do presidente, não precisa de trânsito em julgado e ainda que o trâmite tenha sido ignorado não é essa a questão principal. Quando representantes de instituições começam a desrespeitar a Constituição ou a tentar torcer o seu texto e suas finalidades para agradar sua base eleitoral, atingir seus objetivos pessoais ou simplesmente por se acharem maiores que ela, a Democracia fica em grave perigo. Nada justifica, nada compensa e pode-se chegar ao ponto em que ninguém mais tem o controle. Esperamos que o Supremo não caia na armadilha e não responda a provocação incorrendo no mesmo erro. É hora de os adultos botarem ordem na casa. Essa escalada destrutiva precisa parar ou todos vamos perder muito mais do que imaginamos.

Rafson Ximenes é defensor público geral da Bahia e colunista do CORREIO