Obrigado, meu avô!

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  • Rafson Ximenes

Publicado em 13 de abril de 2024 às 08:06

Infelizmente, o último dos meus quatro avós, o Coronel Francisco Zilmar Saraiva, faleceu. Um homem que amava o exército tanto quanto idolatrava Leonel Brizola, que descrevia como o maior brasileiro que conheceu. Esteve ao seu lado, na Cadeia da Legalidade. Entusiasmava-se principalmente o compromisso real e intransigente do gaúcho com a educação e o patriotismo. Antes, o ídolo era Getúlio Vargas, pela preocupação com os pobres. Após a morte dele, foi encarregado de comandar a defesa da sede da Globo que a população queria depredar. Chorava a morte do presidente que admirava, mas cumpriu a missão. Minha mãe conta que, no dia seguinte, a capa do jornal era ele com uma metralhadora na mão.

Nunca achei a foto. Mas, para os netos, os feitos mais importantes nunca saíram na imprensa. Na nossa memória, o que importa mesmo é a mistura de carinho, bom humor e despreocupação. É a gargalhada. Como a que soltou quando em pleno almoço de domingo, cantarolava uma música que dizia “ Ô, Darci! Ô, Darci” e foi interrompido pelo meu irmão, aos 5 anos, corrigindo “Tá errado, Vovô... o certo é F..., F...”.

Sempre que esses almoços de domingo não aconteciam na sua casa, quando estava satisfeito e já conversara tudo o que queria, repentinamente, soltava um ditado popular: “Carapanã encheu...” e esperava alguém completar “voou”. Então ria e ia embora, tranquilo e feliz. Carapanã é um mosquito e, como todo inseto se alimentando, quando fica de barriga cheia, voa contente.

Quando teve um sítio e os encontros aconteciam lá, porém, em vez de voar, o carapanã deitava na rede no alpendre e roncava alto por horas. Ao acordar, perguntava na maior desfarçatez, “Eu cochilei?” Era a mesma cara de pau com que jogava baralho reclamando sem parar “não tenho nada... minha mão está horrível”, até que em um rompante baixava todas as cartas de vez, vencendo a partida. E ainda insistia: “eu não tinha nada mesmo”...

Também fica a lembrança do avô que adorava ler e sempre orientava: “vocês precisam ser bons em todas as matérias, mas têm que ser ótimos em português e matemática. É a base de tudo. Leia muito, leia sempre.” Era o mesmo avô que sempre esquecia de abotoar as camisas, para desespero da minha avó. Que esquecia de fechar as janelas do carro, quando estacionava nas avenidas mais movimentadas da cidade. Que todo dia, saía caminhando para comprar o jornal e adorava ir na praia, apenas para respirar profundamente o ar do mar. Que ria sem parar quando minha avó, já perto dos seus 80 anos, contava que recebeu uma cantada no Supermercado.

Uma vez, me levava para casa e quando parava o carro, Zé Ramalho começou a cantar no rádio: “Tá vendo aquele edifício moço? Ajudei a levantar. Foi um tempo de aflição, era quatro condução. Duas pra ir, duas pra voltar...” Me mandou esperar no carro até que a canção acabasse. Ao final, com lágrimas nos olhos explicou: “Não se pode interromper essa música. É linda”.

Raramente se chateava. Uma vez foi quando em uma dessas caronas acabei com o estoque de balas de hortelã do seu porta-luvas. As balas serviam para disfarçar quando fumava escondido da nossa avó. Deixei ele em apuros. Mas, todo mundo conhecia o truque, inclusive ela. Quantas vezes sabemos que pessoas que admiramos têm hábitos, gostos, que não concordamos e simplesmente aceitamos, porque nosso amor é infinito? Quem não tem seus cigarros e suas balas de hortelã?

Após a partida da minha avó, ele mantinha uma serena convicção de que a sua jornada estava acabando. Mas, continuava gargalhando com os bisnetos. Quando alguém dizia que ele era inteligente, respondia: “não, inteligente é a minha filha” e contava orgulhoso histórias sobre todos os filhos. Já acamado, se perguntavam sobre um bisneta respondia: “ é a futura miss Brasil” e tome-lhe histórias sobre os demais e novas gargalhadas.

Perguntado sobre o que desejava do futuro, respondia: “O que eu posso pedir mais? Deus já me deu tudo o que eu queria...” Estava pleno. Estava satisfeito. Finalmente, no Hospital do Exército, cerrou os olhos. Foi impossível, impossível evitar a vontade de que levantasse sorrindo e perguntando com a maior cara lavada: “Eu Cochilei?” Mas, não tinha jeito. O ar que faltou aos seus pulmões já o levava de volta para minha avó. Estava saciado e feliz com a vida que levou. Carapanã estava de pança cheia. Foi chamado a voar para a sua nova casa.

A vida e as pessoas são complexas, mas a maior sabedoria se esconde na simplicidade daquele mosquitinho. A maior lição do meu avô foi o seu exemplo, sua capacidade de estar plenamente feliz com as pequenas coisas do dia a dia, sua sensibilidade de chorar com a pobreza, suas balas de hortelã e sua sabedoria para entender os cigarros dos outros. Obrigado, meu avô!