Chegou a hora do lockdown? Cientistas debatem medida que pode ser alternativa para o Brasil

Com avanço de casos, neurocientista Miguel Nicolelis afirma que Brasil precisa adotar medida com urgência; saiba o que dizem outros especialistas

Publicado em 9 de janeiro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: AFP

Tudo parecia caminhar para a volta de uma relativa normalidade. Em 13 dias, o Reino Unido aplicou 1,3 milhão de doses de vacinas contra a covid-19 em sua população. Para as autoridades britânicas, com duas vacinas aprovadas e a imunização em andamento, a vida voltaria ao normal até a Páscoa de 2021. Mas, por lá, as coisas mudaram - e muito - em pouquíssimo tempo.

Mesmo sendo a quarta nação com a maior proporção da população vacinada (1,91 dose para cada 100 pessoas) - atrás de Israel, Emirados Árabes e Bahrein, segundo dados do Our World in Data, da Universidade de Oxford -, o Reino Unido enfrenta seu terceiro lockdown. Em vez de normalidade, o primeiro-ministro, Boris Johnson, anunciou na segunda (4) que adotará novamente a medida para conter a explosão de casos e o avanço da B117, nova cepa do coronavírus, mais transmissível e presente em mais de 50% dos novos casos por lá. A variante já chegou ao Brasil e esta é uma das razões para que o lockdown volte às discussões como uma medida urgente a ser tomada aqui.

As outras razões passam pela preocupação com o avanço de casos e mortes, sobretudo após as festas de fim de ano, e ainda por uma estratégia para que a vacina tenha impacto a partir do segundo semestre, sem que, neste meio tempo, o sistema de saúde seja pressionado e entre em colapso. O pontapé inicial foi dado no início da semana pelo neurocientista Miguel Nicolelis, coordenador da comissão científica do Consórcio Nordeste de Combate ao Coronavírus.

No Twitter, Nicolelis postou que o Brasil corre o risco de entrar num colapso sanitário, social e econômico em 2021.“Acabou. A equação brasileira é a seguinte: ou o país entra num lockdown nacional imediatamente, ou não daremos conta de enterrar os nossos mortos em 2021”, escreveu.Embora o assunto tenha voltado à discussão, nem todo mundo pensa igual. Especialistas ouvidos pelo CORREIO concordam que o lockdown ajuda a reduzir a transmissão, mas eles transitam entre concordar com a necessidade urgente da adoção da medida, ponderar que o lockdown é necessário, desde que haja condições de efetividade ou, ainda, dizer que não é bem por aí – e que, além de um lockdown, o Brasil precisa fazer vigilância epidemiológica.

Decisões Na Bahia, o apelo de Nicolelis não deve vingar. Para o secretário estadual de Saúde, Fábio Vilas-Boas, não existe necessidade de lockdown no estado neste momento. “E ele seria muito mal recebido, com grande desobediência civil, impossível da polícia controlar”, explicou. Na terça-feira (5), o prefeito de Salvador, Bruno Reis (DEM), minimizou as declarações de Nicolelis.

“Com todo respeito ao Consórcio Nordeste, desde o início da pandemia as posições deles sempre foram mais radicais que a média das opiniões de outros cientistas e outras instituições. Então, muita calma”, disse Bruno. Nesta sexta-feira, ele informou que vai a Brasília pedir prioridade para Salvador no recebimento de doses da CoronaVac e acrescentou que a cidade está preparada para a vacinação.

O governador Rui Costa (PT) também disse na quinta-feira que a Bahia está preparada, com expectativa de iniciar a imunização em um mês.

Mesmo com as vacinas, além do Reino Unido, a Itália, a Alemanha e a Dinamarca também anunciaram que vão reforçar as medidas de isolamento por conta da segunda onda da doença. No Brasil, o lockdown nunca foi adotado de forma unificada, exceto em algumas cidades e estados.

A prefeitura de Belo Horizonte (MG) decretou que a cidade entrará em lockdown a partir de segunda-feira (10). No Amazonas, a Justiça decidiu manter um decreto de novo lockdown no estado. Na capital, Manaus, o prefeito David Almeida (Avante) admitiu novo colapso no sistema de saúde e disse só ter covas para dois ou três meses. A cidade decretou estado de emergência por mais seis meses.

Números Nos últimos dias, o índice de ocupação de leitos hospitalares teve altas em diversos locais do Brasil, assim como as mortes. Na Grande São Paulo, a ocupação do leitos de UTI destinados a pacientes com covid-19 chegou a 100%. Em Belo Horizonte, se aproximou dos 90%. No Rio de Janeiro, chegou a 93%.

Na Bahia, na sexta-feira (8), a taxa de ocupação dos leitos de UTI adulto era de 74%. Em Salvador, de 71%. O número de mortes voltou a cair, mas os dados do início da semana indicavam um sinal de alerta, segundo a doutora em Matemática Juliane Oliveira, do Cidacs/Fiocruz: “Salvador estava com uma média de 14 óbitos entre 24 de dezembro e 4 de janeiro, e chegou a 34”. Na sexta, voltou a 14.

As idas e vindas nos números e nas medidas são como uma montanha-russa, descreveu o escritor e divulgador científico David Quammen, autor do best-seller O Contágio (Companhia das Letras, 544 p., R$ 99,90), durante entrevista ao Roda Viva. O homem que ‘previu’ a pandemia que vivemos hoje e que aponta as falhas na preparação das autoridades para enfrentá-la diz que viveremos altos e baixos, aberturas e reaberturas por um bom tempo, até que as vacinas sejam amplamente aplicadas e que as pessoas se convençam de que elas são seguras e benéficas.

Veja o que dizem os especialistas ouvidos pela reportagem:

MIguel Nicolelis aponta equação: lockdown já

O neurocientista, coordenador da comissão científica do Consórcio Nordeste de Combate ao Coronavírus, Miguel Nicolelis, deu o pontapé inicial para novas discussões sobre a adoção ou não do lockdown no país ao fazer uma postagem no Twitter na última segunda-feira (4). Para ele, não há outra equação para o Brasil que não um lockdown nacional - como feito em outros países.

O lockdown já vinha sendo discutido desde o início da pandemia e chegou a ser adotado em alguns locais do país, mas de forma isolada. Na segunda-feira, veio a primeira postagem de Nicolelis sobre o assunto.“O Brasil precisa criar uma Comissão de Salvação Nacional p/ ontem. Passamos de todos limites aceitáveis de estupidez. Estamos correndo o risco de entrar em colapso sanitário, social e econômico em 2021. O Brasil está na UTI e o diagnóstico é falência terminal de múltiplos órgãos”, postou no Twitter.Na sequência, ele citou o caso do Reino Unido que, mesmo já vacinando a população, entrou no terceiro lockdown. “Até Boris Johnson se rendeu aos fatos. Por aqui, a palavra lockdown virou palavrão para gestores. Tanto melhor para o coronavírus que se beneficia da inoperância, omissão e ignorância rampantes”, continuou.

E completou com o prognóstico: “Acabou. A equação brasileira é a seguinte: Ou o país entra num lockdown nacional imediatamente, ou não daremos conta de enterrar os nossos mortos em 2021”. Os três tuítes somaram 44,6 mil curtidas e 8,6 mil retuítes.

Nicolelis continuou defendendo o lockdown durante a semana, lembrando a decisão de Belo Horizonte em adotar a medida e apontando os dados de ocupação de leitos de internação no país.

Segundo ele, uma situação ainda mais preocupante vem acontecendo agora, na segunda onda, diferente do que ocorreu na primeira: o crescimento acelerado de casos em todas as regiões do país, simultaneamente. E, em cada estado, também de forma sincronizada nas capitais, interior e regiões metropolitanas.

Após pedir que seguidores compartilhassem dados de ocupação de leitos em suas cidades, Nicolelis compartilhou gráficos, fazendo um novo alerta na quinta-feira: “O Brasil precisa de lockdown já!”.

Epidemiologista Naomar de Almeida Filho defende vigilância epidemiológica

O epidemiologista Naomar de Almeida Filho, professor do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), reconhece que o lockdown reduz, sim, o nível de transmissão da doença, já que o vírus tem dificuldade de encontrar novos hospedeiros, mas a medida, sozinha, não soluciona o problema. Segundo ele, o impacto econômico do lockdown, sozinho, já é muito grande, mas a energia gasta não é potencializada se não houver vigilância epidemiológica.“É o sistema de saúde ficar monitorando o aparecimento de casos e esses casos serem submetidos ao isolamento, se estendendo aos contatos desses casos. E isso não está sendo feito. O lockdown reduz a transmissão, evidentemente, mas seria mais eficaz se fosse acompanhado de vigilância epidemiológica, até para ser mais curto e mais focal, nos locais com mais transmissão”, aponta.Para ele, falta coordenação e um planejamento mais refinado e mais eficiente.

Ethel Maciel aponta que momento é crucial para impacto da vacina

A enfermeira Ethel Maciel, PhD em Epidemiologia pela Johns Hopkins University (EUA) e professora da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), concorda com as indicações de Miguel Nicolelis. Ela, inclusive, foi uma das pessoas que o retuitaram.“Eu defendo o lockdown desde o início, desde a primeira onda, e eu continuo defendendo agora e vejo que esse momento é muito importante para que a gente garanta que a vacina vai ter um impacto pelo menos para o segundo semestre no Brasil. Se não, a gente só tá empurrando o problema e vamos passar 2021 com muitos casos e muitas mortes”, explica.Para Ethel, é uma irresponsabilidade manter a circulação de pessoas em plena segunda onda, com a iminência de abertura de escolas e com o Enem se aproximando - são 6,1 milhões de candidatos -, sem que o governo fale em adiá-lo: “Nós já temos a confirmação de que a variante B117 está circulando aqui, nós já temos em alguns estados o aumento da internação em crianças, uma característica dessa variante que se tornou mais transmissível em crianças, então é uma grande preocupação para nós agora, principalemnte pensando na abertura das escolas”.

Lockdown precisa ter condições de ser efetivo, diz matemática Juliane Oliveira

A matemática Juliane Oliveira, pós-doutoranda do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz), o melhor momento para adotar um lockdown seria antes das festas de final de ano. Mesmo assim, acredita, nunca é tarde para fazer um lockdown. “Baseado no que a gente está observando de ocupação de hospital, se agora já está tendo um alerta de colapso, tem que ser feito um lockdown e ele tem que ser feito pensando em ser efetivo”, afirma.

A preocupação de Juliane é que as pessoas, sem auxílio, não tenham condições de cumprir um lockdown e precisem sair para trabalhar. “Não adianta fechar se você não dá suporte para a população seguir essas medidas”, aponta. Ela explica porque um lockdown ajuda no impacto da vacinação:“Não dá para vacinar todo mundo de uma vez. Em paralelo com a vacinação, é preciso ter medidas de restrição, porque senão você vai vacinar uma parte da população enquanto a outra vai estar circulando, adoecendo e sobrecarregando o sistema de saúde”, afirma.Lockdown é opção em locais com maior descontrole, diz infectologista Dessana Chehuan

Gerente de Urgência da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado, em Manaus (AM), a infectologista Dessana Chehuan defende que o lockdown é, sim, uma alternativa neste momento, sobretudo em locais onde o número de novos casos da doença está mais descontrolado. É justamente o caso de Manaus, onde ela trabalha."Em determinadas regiões do país, a gente teve um descontrole, realmente, da doença. Manaus foi um desses focos. As medidas de prevenção que a gente vem batendo, como distanciamento social, evitar aglomerações, elas são essenciais, mas a gente, de certa forma, relaxou, a gente vê que a população acabou viajando... e isso pode vir a trazer para o país novos surtos", aponta. Para ela, o relaxamento das medidas de isolamento acabou com uma certa estabilização de casos que vinha acontecendo em algumas regiões. Por isso, acredita que o lockdown é importante em alguns locais.

"O lockdown seria de fato uma opção no intuito de interromper os novos casos. A gente está agora com a novidade da vacina, mas se não tiver a possibilidade de o Brasil ter essa vacinação em massa, nas regiões onde há um surto maior, realmente é uma opção. Onde vai ter a disponibilidade da vacina, talvez ele possa aguardar", pondera,

É medida imediatista: quanto antes se faz, melhor, diz infectologista Clarissa Cerqueira

Para a infectologista Clarissa Cerqueira, do Hospital Cárdio Pulmonar, em Salvador, o lockdown é uma alternativa válida neste momento, principalmente porque não se sabe ainda como exatamente será o processo de vacinação. "Eu acho sim que o lockdown deve ser feito, infelizmente. Não é uma coisa que eu gostaria de falar, mas é o que eu sou a favor no momento, ainda mais agora que a gente está falando de vacina, mas a gente ainda não sabe quando vai começar, como vai vacinar, não vão ser muitos que vão ser vacinados de uma vez só. Para a gente vacinar grande parte da população ainda vai demorar", aponta.

Ela acredita que o lockdown é uma medida mais imediatista e que, inclusive, deveria ter sido feita antes. A gente está um pouco atrasado, porque o quanto antes se faz, melhor."A gente observa resultados e os números já estão aumentando há um tempo. Então, para a gente controlar o avanço da doença que a gente observa desde novembro, é bom que a gente faça, sim, um lockdown, porque é o que a gente consegue. As pessoas estão desacreditadas com as medidas, relaxaram mesmo, estão aglomerando, fazendo festas. Um lockdown agora é o que iria mais ajudar no controle da covid", afirma.