Depoimento: André, o deus da 9

'Fez a gente de zagueiro, tirou de lado e meteu uma bomba no canto do coração de cada um de nós'

  • Foto do(a) author(a) Paulo Leandro
  • Paulo Leandro

Publicado em 28 de julho de 2021 às 19:28

- Atualizado há um ano

. Crédito: Lidia Leandro

E assim André nos deixou, tão arisco como costumava ser dentro da área. Fez a gente de zagueiro, tirou de lado e meteu o susto, uma bomba no canto do coração de cada um de nós, seus escravos. 

Felizes os escravos capazes de escolher seu Senhor. Ali não tinha fraude. Desde seus primeiros chutes, no Campo da Graça. Coragem e técnica. Honrava a camisa, sem falsidade de dar beijinho em escudo. Fim de jogo, uniforme sujo, encharcado. 

Deixou a gente sem pai nem mãe no meio dos Jogos Olímpicos. Zeus chamou. Tem baba pra pirão nos Campos Elyseos, para onde vão os goleadores convocados. Tá lá com a 9, jogando duro, balançando rede, com chute certeiro ou botando zagueiro e tudo pra dentro. 

A treita das fiandeiras do destino está clara como o olhar do novo titular olimpiano. A terceira delas, responsável por cortar o fio da vida, esperou o dia seguinte ao encontro de seus dois grandes times, o Vitória e o Grêmio, pela Copa do Brasil. 

Fui batizado Vitória por André, Osni e Mário Sérgio, no dia 17 de dezembro de 1972, quando vencemos por 3x1 a final contra eles, e desde então já não me senti precisando de mais nada na vida, tendo sido contemplado pela sorte de uma infância de arte vencendo a realidade. 

Aquilo não era um ataque e sim um poema, Homero e Hesíodo perderam esta chance. O Grêmio foi outra casa de André, esta mais grata, pois os gaúchos mandavam buscar o ídolo no conjunto Santa Bárbara, aqui em Brotas, para levá-lo às comemorações em Porto Alegre. 

Mas não pensem escolher André a camisa pela qual daria a vida em campo. No juvenil do nosso indígena Guarani, ele já empunhava a lança afiada de Ares, deus da Guerra seu guia. Quem primeiro o tentou marcar, nosso colega Antônio Matos, está aí para testemunhar. 

Orgulho do nosso melhor futebol, depois do Guarani, André vestiu as camisas do Ypiranga e do Galícia, entre outros clubes, antes de rebrilhar no Vitória. 

Quando parou, após ter ensaiado boas experiências como treinador, enfrentou uma sobrevida não tão tranquila do ponto de vista financeiro como os enganadores de hoje e seus endinheirados agentes Fifa, muito mercado e a bola, murchíssima. 

O pôster emoldurado de André vai continuar na parede do nosso pequeno museu rubro-negro ao qual insistem chamar de apartamento. André sempre estará nesta área, dando a lição de coragem, um ser meio selvagem meio divino, um Centauro de força e sabedoria, como Quíron, mestre de Héracles.

A separação é provisória, afinal, também voltaremos a aplaudi-lo das arquibancadas olimpianas, mais dia menos dia. 

É o jeito obedecer a quem mais se deve obedecer neste país, o ídolo sagrado, este sim um mito ao qual se deve louvar e oferecer sacrifícios.

André não ia gostar de ver ninguém chorando igual neném, só porque subiu a plaquinha pra ele:

-Segura a onda, toma a porrada e levanta!, diria o homem-gol, no grito. 

Paulo Leandro é jornalista e professor doutor em Cultura e Sociedade.