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Doulas da morte: mulheres que cuidam de pacientes terminais falam da rotina do adeus

Lidar com familiares de pacientes, muitos deles idosos, é um dos principais desafios de quem trabalha com cuidados paliativos

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  • Da Redação

Publicado em 16 de abril de 2022 às 07:00

. Crédito: Foto: Marina Silva/CORREIO

Foto: Marina Silva/CORREIO Semana Santa cristã é um período que pode causar confusão na cabeça de muitos fiéis. Primeiro evocam o amor e a luta de Jesus para salvar a humanidade, depois choram o seu martírio e morte, e logo em seguida tornam a celebrar o Salvador, na Páscoa, por sua ressurreição. Mas esse carrossel de emoções, que envolve vida e morte – e de novo vida, só que agora em outro plano –, para muitas pessoas não está restrito a apenas uma semana do ano, e sim a quase todas. Só férias e folgas salvam os profissionais (quase sempre mulheres) que cuidam de pessoas nos últimos dias de vida.

Parte dessas trabalhadoras, inclusive, já recebeu até um título para designar a atividade: doulas da morte, termo que também expressa certa dubiedade de sensações, afinal, doula é uma palavra mais associada ao nascimento, referente a mulheres que auxiliam gestantes prestes a dar à luz. Um trabalho, aliás, que envolve muito preparo, assim como de quem acompanha pessoas perto de “ir para a luz”. 

É o caso da cuidadora de idosos Caliane Aglai Florentino, 28 anos, que após mais de uma década de experiência, acompanhando o processo natural de regressão do corpo de algumas pessoas, antes de uma partida que pode ser “tranquila”, passou a ensinar a arte desse cuidado.

Professora na agência Humaniza24H, em Salvador, ela treina doulas do fim da vida para que tenham preparo emocional na hora de lidar com pacientes e familiares. “Respeito, carinho, atenção. Esses são os pilares do nosso trabalho. A gente precisa estar em boa sintonia com os familiares do idoso que está sob nossos cuidados, sugerindo medidas que possam contribuir para a qualidade de vida durante o cuidado paliativo. Uma cuidadora acompanha todo o processo de regressão humana, tentando garantir uma partida mais tranquila”, explica Caliane, que atualmente cuida de uma idosa de 97 anos. Conta que a paciente apresenta dificuldades motoras, mas está “completamente ativa”. Caliane Aglai Florentino, 28 anos, cuidou do primeiro paciente terminal quando ainda não era profissional, aos 17 anos (Foto: Acervo pessoal) Altamente ativa também estava a própria Caliane no começo desse trabalho, iniciado com pouca instrução, aos 17 anos. Incutida na missão, buscou graduação em Enfermagem e outras especializações. “A gente nunca está 100% preparada para a situação de morte, por mais que a maior experiência ocorra ao longo do tempo. Quando ocorre de um idoso ter um problema de saúde que possa levar à morte, nossa missão é aplicar técnicas de primeiros socorros para tentar reverter ou adiar o óbito. No entanto, ao ocorrer o duro processo da perda, chega a hora de servir de suporte, acionando o Samu e fazendo o contato imediato com familiares”, detalha.

Apoios múltiplos Integrante de núcleo oncológico hospitalar, e também com experiência como cuidadora de longa data de um ente que veio a falecer, a enfermeira Letícia Pereira, 35, lida com a expectativa de morte no seu dia a dia, de modo que já se tornou algo natural na rotina. A experiência faz com que compreenda de forma mais clara o comportamento de todos os atores envolvidos no tratamento e acompanhamento de pacientes terminais – bem como de pessoas com doenças graves com perspectiva de cura.  

“Os pacientes se sentem inseguros. Afeta a questão psicológica, sentem raiva, medo, alguns ficam agressivos, depende muito. Mas é todo um processo mesmo, que vai de acordo com a doença, de como o paciente lida. Tem os que são mais esclarecidos, procuram entender o que está se passando, tentam olhar de outra forma, porém se sentem afetados não só pela questão da dor, mas também pela mudança do dia a dia, a independência”, cita a enfermeira, que defende uma abordagem pautada no esclarecimento.“O profissional tem um olhar mais voltado para a doença, do entendimento do que é a doença, de todo o processo que vai ter a equipe e junta médica acompanhando juntos os familiares, para poder abordar o melhor tratamento, tanto em casa quanto em âmbito hospitalar, até que se chegue ao fim da vida”, afirma a enfermeira.Com relação ao olhar familiar, lembra Letícia, as dores são outras. “Dói a questão de saber que vai ter a perda do ente querido. Às vezes a questão financeira, nem todo mundo tem como dar o suporte da melhor forma. Isso afeta a questão psicológica também”, acrescenta, sem esquecer que esses problemas também afetam os envolvidos no cuidado. “Para o profissional de saúde é desgastante, porque são muitas horas trabalhadas, mas eles estão ali para dar todo amor, todo suporte ao familiar e ao paciente, neste caso tanto o apoio físico quanto o emocional”. A enfermeira Letícia Pereira, 35, atua em ala uma oncológica e defende máximo esclarecimento de pacientes (Foto: Acervo pessoal) Emocional afetado Há 15 anos trabalhando com pessoas que necessitam de cuidados paliativos, Ana Lúcia Anjo, 40, concorda com a enfermeira sobre os aspectos emocionais que afetam as pessoas no contato direto com a morte alheia.“A gente sofre junto, não é verdade? A partida é um momento muito triste, mas a gente tenta levar a situação para um plano espiritual. É uma forma de buscar consolo”, diz Ana Lúcia sobre outra estratégia bastante recorrente entre essas doulas: o apelo à fé.Para Ana, a missão de gerar maior conforto para quem está partindo é um privilégio, principalmente por fazer parte das últimas vivências desse paciente. Segundo ela, a despedida mais difícil está relacionada com o cuidado de alguém que, inicialmente, não apresentava sintomas de comprometimento na saúde, mas regrediu de quadro ao longo do tempo.

Segundo a advogada Amanda de Castro Araújo Pereira, especializada no segmento funeral e cemiterial, as profissões que lidam na linha de frente com a morte tendem a ter o emocional mais afetado.“Hoje em dia muitas empresas já disponibilizam um suporte psicológico para esses colaboradores. Mas no caso da doula da morte, ela costuma ser uma profissional mais autônoma”, diz ela, destacando um problema que afeta parte do segmento.“A morte é um momento muito comum a todos nós, mas muito intenso, com muita carga emocional”, reforça a advogada, que defende a regulamentação da atividade de doula da morte – seguindo o caminho das doulas de nascimento. No último dia 16 de março, o plenário da Câmara Federal aprovou o PL 3.946/2021, que prevê regras e requisitos para o exercício da profissão que presta auxílio na gravidez. O projeto segue em tramitação.

Também tramita na Câmara o PL 2564/20, que regulamenta o piso salarial nacional para os profissionais do campo da enfermagem, prevendo R$ 4.750 para enfermeiras e enfermeiros, 70% para técnicos em enfermagem e 50% para auxiliares em enfermagem e parteiras. A média salarial atual de uma enfermeira, na Bahia, é de R$ 4.200, segundo o Ministério da Economia. Já uma cuidadora de idosos, sem formação acadêmica, costuma receber entre um salário mínimo e R$ 2.400, com possibilidade de maior remuneração a depender das especialidades e demandas extras de trabalho.

Quebra de paradigmas Psicóloga e especialista em cuidados paliativos, Amanda Nascimento explica que o cuidado paliativo feito por mulheres que atuam como doulas surge para quebrar o paradigma social sobre o fim da vida, a ideia de que não é possível fazer algo que conforte quem está morrendo.

“Além de não querer falar sobre a morte, a nossa sociedade tem o costume de que não existem cuidados que precisam ser tomados por quem está na iminência do óbito. Quando se trata desse tipo de cuidado, estamos falando de ações que caminham desde o diagnóstico de uma doença terminal, por exemplo, até o momento da partida e do luto dos familiares”, explica.

A psicóloga acrescenta a importância da rede de apoio para as pessoas que necessitam do cuidado de final de vida. Em momento de pandemia e perdas pela covid-19, ela afirma que é preciso ficar atento para a forma como um familiar, amigos e até as cuidadoras lidam com o luto. “Durante o processo de vida, vivenciamos diferentes tipos de luto, que não estão só relacionados com a morte de uma pessoa próxima. A perda de milhares de vidas para a covid, por exemplo, pode trazer um luto com o qual seja difícil de lidar. Nessas horas, vale ficar atento para a necessidade de procurar ajuda profissional ou de familiares”, recomenda a psicóloga.

Além da possibilidade de ajuda multidisciplinar para quem está prestes a morrer, e para os familiares dele, a enfermeira Flávia Ferreira, 34, especialista em cuidados paliativos, lembra da importância de oferecer um apoio humanizado e personalizado para cada situação. Ao longo de 10 anos de trabalho, ela confessa que já viu muitas pessoas falecerem, mas os casos sempre foram muito diferentes.“Cada pessoa tinha uma história única, nunca serão apenas números. E o processo de final de vida é tão importante quanto o começo, dentro do nosso ciclo natural. Nesse sentido, o cuidado personalizado tem sua relevância. Para um paciente pode ser importante tomar banho e passar perfume todos os dias, outro prefere passar mais tempo passeando com os familiares”, ilustra.Bom lugar para morrer O cardiologista Lucas Andrade, diretor executivo e fundador da Clínica Florence, na Barra, conta que a ideia de um hospital de transição parte da necessidade cada vez maior de assistência para pessoas que têm doenças que ameaçam a continuidade da vida.

“As pessoas têm histórias de vida que antecedem o adoecimento ou a situação que gerou a ameaça de morte. No tratamento paliativo, a gente tenta resgatar aspectos que fazem parte da vida desse indivíduo, da sua biografia, do que faz sentido para ele. E tudo isso ajuda no processo”, conclui Andrade, criador da clínica que tenta ser o melhor lugar para morrer, ou para viver o fim da vida – vai depender do seu ponto de vista.

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Mulheres são 85% dos enfermeiros na Bahia. Mas por que a dimensão do cuidado é mais ligada ao feminino?

A Bahia tem, atualmente, 42 mil enfermeiras e enfermeiros, de acordo com o Sindicato dos Enfermeiros do Estado da Bahia (SEEB). Segundo a presidente da entidade, Alessandra Gadelha, “85% da categoria é de mulheres. Dessa forma, temos uma profissão majoritariamente feminina”. Esse dado suscita, então, um questionamento importante: por que a dimensão do cuidado costuma ser algo mais ligado ao feminino?

Segundo a mestre em psicossociologia Lívia Vasconcellos, a resposta envolve fenômenos sociais relacionados à divisão do trabalho, principalmente, em agrupamentos sociais mais antigos. “Primeiro a gente tem que pensar que a divisão do trabalho, qualquer tipo de trabalho, nas sociedades, ela tem um caráter social. E isso se dá das mais diferentes formas, inclusive, incluindo exploração, opressão e poder”, inicia. “Mas antes de uma divisão social do trabalho, por diferentes grupos, sejam homens ou mulheres, a gente tinha na sociedade uma divisão sexual do trabalho: mulheres fazem uma parte do trabalho e os homens fazem as outras. Então, para as mulheres sempre ficou atribuído os trabalhos internos da casa, ‘da porta pra dentro’. O preparo dos alimentos, a limpeza da casa e o cuidado com as crianças e com os idosos, esse cuidado mais direto”, exemplifica Lívia, que também atua como psicóloga clínica.“Para os homens eram atribuídas as atividades externas, da porta para fora. Negociações com outros povos, comércio, guerras, caça  etc”, complementa a psicóloga, que trabalha na Universidade Federal da Bahia (Ufba).

Embora não haja números sobre a quantidade de cuidadores de idosos atuando na Bahia, também é notória a predominância feminina nesse segmento. “O cuidado com a saúde, que ele é da porta pra dentro, ficou pra mulher; principalmente aquele cuidado que é com acesso mais direto ao corpo da pessoa que está sendo cuidada. Higiene, troca de curativo, alimentação, mudar de roupa… Até mesmo nas instituições de saúde, que a gente tem homens e mulheres trabalhando, esse acesso mais direto ao corpo, ele é feito de forma mais predominante por mulheres”, complementa Lívia.

Ela reforça, no entanto, que isso é algo “que foi construído ao longo do tempo, que ainda perdura, mas que com as mudanças sociais, a gente tem visto esse papel sendo cada vez mais questionado”.

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Suportes prestados pelas doulas da morte (ou doulas do fim da vida):Acolher os sentimentos de pacientes e familiares Trazer clareza sobre as etapas evolutivas do processo da morte Esclarecer dúvidas do paciente e da sua família sobre o estágio da enfermidade Buscar garantir que os últimos desejos do paciente sejam atendidos Prestar ou auxiliar o apoio espiritual - é desejável uma boa oratória Fora do país há casos em que as doulas da morte dão suporte nas burocracias relacionadas ao sepultamento. Fonte: Amanda de Castro Araújo Pereira, advogada especializada no segmento funeral e cemiterial. Editora do site direitofunerario.com.br e das páginas de redes sociais @advamandacastro e @direitofunerariobrasil.