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Kátia Borges
Publicado em 4 de julho de 2020 às 12:00
- Atualizado há 2 anos
Quando, em 2006, o Padre Pinto alçou a Lapinha ao noticiário nacional, os moradores do bairro trocaram impressões sobre o pároco vestido de Oxum na Missa de Reis em um dialeto quase secreto. Popularizado nos babas, em tempos sem pandemia, a Gualín do Riocontra teria surgido com a intenção de confundir os adversários de jogo e, aos poucos, ganhou a adesão de quem nunca havia tocado nem de bico numa bola.>
Mas há quem diga que a língua inventada é coisa bem mais antiga e que sua origem esteja relacionada a outro tipo de diversão. Considerado um de seus criadores, o ex-jogador do Vitória - e hoje pastor evangélico - Jânio Sacramento, o Russo, 60, situa a origem do Gualín da Lapinha nos anos 1970. Essa seria, segundo ele, uma forma de comunicação entre usuários de drogas com a função de “tirar de tempo” os caretas – não usuários.>
“Começou quando eu era do mundo”, diz ele. Limpo das drogas há 16 anos, Sacramento conta que falar ao contrário se tornou febre na Lapinha e extrapolou a intenção original. “Virou uma espécie de cultura”. O estigma ficou para trás, neutralizado, fora do círculo de usuários. Dizem que, hoje, até os PMs que fazem ronda por lá arriscam o dialeto. “Todo lugar por aqui, São Lourenço, Guarani, Liberdade, fala ou entende”. Matheus e Ábine foram rebatizados e viraram Theusma e Binea (Foto: Resenha da Lapinha) Fato é que esse falar diferente, passado de geração a geração, virou mania nos babas – onde alguns jogadores usam camisas com seus nomes ao contrário – e, mais adiante, no cotidiano do bairro. Para ser considerado morador raiz da Lapinha, falar o Riocontra é “de lei” há pelo menos 50 anos. Não tem cartilha. A garotada aprende em casa e nas ruas, oralmente. “Acredito que isso nunca morrerá. Os pais passam para seus filhos e a coisa segue”, diz o jornalista Jordan Mendes, 33.>
Da Lapinha para o mundo Em 2010, Jordan teve a ideia de homenagear o bairro onde nasceu com um documentário, seu trabalho de conclusão de curso em jornalismo. Escolheu a língua secreta da Lapinha como tema. Além de garantir a aprovação, o média-metragem venceu o prêmio de Melhor Filme, na votação do Júri Popular, na primeira edição do Festival de Cinema Universitário da Bahia. “A minha geração se apoderou da Gualín e a ressignificou. Não usávamos drogas, então ela tinha outra conotação. Criava uma identificação entre nós, que somos da Linha 8, da Lapinha”, diz. O jornalista Jordan Mendes fez um documentário sobre a língua 'ao contrário' (foto: Marina Silva/Arquivo CORREIO) Morando, desde 2013, em outro bairro, ele acompanha a movimentação cultural da Lapinha e, sempre que visita os pais, aproveita para reencontrar os amigos. “Minha relação com aquele lugar extrapola o documentário”. Um desses amigos, o produtor audiovisual Nelson Antônio, 40, foi fundamental na construção do filme. “Me considero um especialista, um mestre, do Gualín”, diz. “Uns chamam de língua de malandro, mas Jordan levou para a academia e mostrou que não é bem assim”.>
Dito ao contrário ou não, nem o distanciamento social é capaz de separar essa turma. Vivendo atualmente em Nova York, o artista visual Admilson Santos Júnior, o Fuca, 38, nascido e criado na Lapinha, acredita que a Gualín foi fundamental na união da nova geração de falantes do bairro. “Ajudou a fortalecer nosso lugar no mundo. Até o som das sílabas adquiriam novas tonalidades. Aprender uma língua, mesmo um dialeto urbano como esse, é apreender uma cultura”.>
Por lá, ele conta que não encontrou nada semelhante, pelo menos, em termos da troca de sílabas ou de inversão de palavras em inglês. No entanto, diz conhecer bastante o “broken english”, versão alternativa da língua oficial que demarca identidades. “É falado, geralmente, por pessoas de outras nacionalidades, imigrantes, especialmente pelos jamaicanos, que costumam usar uma outra entonação/pronúncia”, explica. >
O gualín francês Mas, inverter as sílabas das palavras não é coisa só de baiano maluco ou sabido, como se pode pensar. Na França, os adolescentes também costumam falar ao contrário com fluidez em grupo como forma de pertencimento. A prática é tão usual que ganhou até um nome, Verlan. Esse dialeto teria surgido após a Segunda Guerra e é usada ainda hoje. No Brasil, uma cidade inteira adotou a prática no interior de São Paulo.>
Na cidade de Sabino, até as lojas adotam o que eles chamam de sabinês, invertendo nas placas os nomes das marcas. No Rio de Janeiro, todos conhecem como TTK a fala ao contrário, que teria surgido nas prisões, sido adotada por grupos subversivos, durante a Ditadura, e, resgatada pelo movimento Hip Hop, nos anos 1980, virando a linguagem dos pichadores. A sigla TTK vem do local onde se originou esse falar diferente, o bairro carioca do Catete (ao, contrário, lê-se "Teteca", que soa como "TTK"). No ano passado, o rapper Filipe Ret, ex-morador do bairro carioca, gravou a música Gonê, composta em Gualín. Antes dele, Gabriel O Pensador também fez sua homenagem musical, repleta de inversões de palavras.>
Na real, nem mesmo em Salvador, falar Gualín é exclusividade da Lapinha, embora seja o local onde o dialeto tem maior força. Jordan diz que no Jardim das Margaridas, em São Cristóvão, há fenômeno semelhante. As diferenças, explica, estão na pronúncia. Entre o Riocontra e o TTK, por exemplo, destaca-se o modo como as tônicas são faladas. “E há também as misturas de sílabas de duas ou três palavras que modificam o sentido”.>
Língua ou dialeto? Entender como uma Gualín opera, na prática, não é lá muito complicado: difícil, é acompanhar a fluência de seus falantes. No cerne desse falar diferente está a inversão das sílabas, formando frases de sonoridade híbrida. Mas o que a leva a ser um traço de identidade e de união em uma comunidade?>
Para a doutora em linguística Marta Cardoso de Andrade, um dialeto pode ser considerado como uma variação linguística dentro de uma língua formal, e costuma ser muito importante em termos identitários. “Ele surge como um fechamento da comunicação, com a intenção de colocar outras pessoas à margem do que se fala em determinado grupo”.>
Como exemplo dessa força identitária, ela cita o modo como os negros norte-americanos usaram a linguagem para estabelecer os domínios de sua comunidade. “Eles transformaram o inglês em algo diferente, criando uma variação, de modo que os brancos não entendessem o que falavam. A língua tem esse poder”. Fuca morava na Lapinha e falava Gualín. Hoje, é artista visual em Nova York (foto: acervo pessoal) Uma análise mais profunda, pontua a linguista, envolveria o estudo detalhado dessa variação. “Teríamos que categorizar se a Gualín se afastou muito da língua portuguesa ou se continua mantendo traços dela, parece-me que, em termos fonológicos, ela se tornou um dialeto, ainda que de menor prestígio, forjado a partir do padrão formal”. >
Seja nas ruas da Lapinha, na cidade de Sabino, no bairro do Catete ou entre os adolescentes de Paris, o que quer é o que pode essa língua.>
Ouça a música Gonê, cantada em Gualín do TTK por Filipe Ret>
*As fotos desta reportagem foram feitas antes do início da pandemia>