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Livraria flutuante, que se envolveu em polêmica ao definir Salvador como cidade de 'espíritos e demônios’, ancorou em cima de local
Alexandre Lyrio
Publicado em 3 de novembro de 2019 às 06:06
- Atualizado há um ano
Foto: Andre Motta de Lima e Leandro Duran Quando o navio Logos Hope deixou a Europa no início de outubro, os tripulantes não imaginavam o que lhes esperava nas águas da Baía de Todos os Santos. Para começar, bem perto de onde o navio atracou, a uns cinco metros de profundidade, no Porto de Salvador, está instalado o que as religiões de matriz africana chamam de assentamento de Exu. O que nem o comandante do navio biblioteca deve saber é que Exu pode não ser santo, mas de demônio também não tem nada.
No dia de Exu, ebó coletivo marca protesto contra navio no Porto de Salvador
Tendo como base uma rocha afundada em uma área que separa a Codeba do Ferry Boat, o assentamento de Exu foi descoberto em uma operação arqueológica que virou objeto de estudo da ialorixá, mestre em estudos étnicos e africanos, doutora em arqueologia e arqueóloga mergulhadora Luciana de Castro. Autora do livro O Exu Submerso - Uma Arqueologia da Religião e da Diáspora no Brasil - ela confirma que o assentamento foi colocado ali como um guardião da Baía, protetor dos marítimos e feirantes de São Joaquim.
Para Luciana e para outros tantos sacerdotes e integrantes do candomblé, não foi por acaso que o texto postado nas redes sociais da organização cristã OM Ships International, responsável pelo navio, teve tanta repercussão negativa para o Logos Hope. Dois dias antes de atravessar o principal acesso marítimo para a terra do Axé e atracar no Porto de Salvador no dia 25 de outubro, a OM Ships fez uma publicação no Facebook na qual afirmou que a embarcação estaria se dirigindo a uma cidade “conhecida pela crença do povo em espíritos e demônios”. Foto: Andre Motta de Lima e Leandro Duran Das primeiras respostas na Internet, o assunto foi parar na imprensa e chegou ao Ministério Público da Bahia (MP-BA), que instaurou procedimento para investigar o que seria um ato de racismo e intolerância religiosa. O comentário de uma internauta em resposta ao texto postado já sugeria que o orixá daria uma resposta. “Que Exu os receba na entrada com toda sua sabedoria. E nos proteja do Satanás que vocês carregam dentro do coração”, escreveu.
Talvez ela nem soubesse da existência do assentamento, mas, como uma boa baiana, parecia estar ciente de que este orixá é o guardião daquelas águas. Aliás, segundo Luciana, o fato de a mensagem ter reverberado na imprensa e despertado a revolta do povo baiano não foi só obra do orixá mensageiro e dono da comunicação. O “morador” do assentamento certamente teve a ilustre contribuição da rainha das águas e dos outros integrantes do panteão dos orixás na resposta ao ataque feito pelo navio. Luciana segura livro, que será lançado na Ufba (Foto: Marina Silva/ CORREIO) “Exu é filho de Iemanjá. A água é uma grande condutora de energia e mensagens. Então a coisa se ampliou. Xangô também entrou com a Justiça através do Ministério Público. Nenhum orixá está sozinho”, ensina. “A Baía é de Todos os Santos, mas é muito mais do ‘axé’ do que do ‘amém’”, acredita Luciana. Para ela, enquanto atravessava o Atlântico, o navio já sofria a influência de Exu. “Existe uma interconexão de Exu com a África. Daqui até lá tudo é Exu, pai”, aposta Luciana.
Descoberta Provavelmente instalado no local ainda na década de 1970, ou seja, após a construção do terminal do Ferry Boat, o Exu submerso foi descoberto em um trabalho de licenciamento ambiental realizado pelo marítimo profissional e fotógrafo André Lima, o arqueólogo subaquático Leandro Duran e o marítimo Mário Mukeka.
Em 2010, os três foram contratados para elaborar um relatório arqueológico para uma obra que seria realizada pelo Porto de Salvador. Nesta operação, Leandro e André se depararam com o Exu. “Ele estava em cima de um enrocamento [conjunto de blocos de pedra ou outro material colocado dentro da água para servir como lastro] semelhante a esse aí”, disse André Lima, apontando para uma daquelas grandes rochas usadas para formar um quebra-mar. “A gente não mexeu nele, né? Deixamos como estava lá. Porque a ideia era essa, né?”, conta André.
Leandro e André têm dúvida até hoje sobre quem fotografou o Exu, por isso dividem a autoria da imagem. “À primeira vista ficou bem claro que não se tratava de nada jogado, mas de um equipamento religioso que foi colocado ali no fundo. Também pensei que houve algum tipo de manutenção, porque estava cuidado, não tinha algas ou incrustações. Estava limpo”. A imagem registrada, bem nítida, foi parar no Departamento de Arqueologia da Universidade Federal de Sergipe, onde Luciana fazia um estudo e viu a foto por “acaso”.
O Exu submerso mudaria a vida da arqueóloga, religiosa e filha de Exu, que a partir dali se tornaria mergulhadora e faria um estudo inédito que mistura arqueologia e religião. “Sou do santo, sou de Exu, e nunca tinha visto nada parecido. Nunca tinha visto um Exu dentro d´água”, disse Luciana, usando um fio de contas vermelho e preto.
Recomendação No relatório, o arqueólogo subaquático Leandro Duran recomendou ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que consultasse a comunidade do povo de santo para saber qual a melhor “gestão do artefato”.
“Considerando que a proposição era o aterramento da área, a perspectiva era a possibilidade de relocação do totem para um outro espaço subaquático que fosse adequado”, disse Leandro.
No seu livro, Luciana sugere que o assentamento de Exu pode ter sido aterrado ou sugado para a obra. “Obviamente um assentamento de orixá não seria respeitado, né? A arqueologia não define isso como um artefato arqueológico. Ou a gente reforma a nossa ideia de patrimônio, ou a gente vai privilegiar esse modelo branco e eurocêntrico”.
Procurado, o Porto de Salvador informou que jamais recebeu notificação do Iphan sobre a existência do Exu. Já o Iphan solicitou mais tempo para apurar o fato, o que ocorreria nessa segunda-feira (4). Enquanto isso, os visitantes do navio biblioteca interpelados pelo CORREIO se dividiam sobre o assunto. “Eles não estavam falando da religião de ninguém, mas de espíritos do mal. Ninguém falou de religião”, disse o missionário batista José Barbosa.
“Eu sou evangélica, mas não acho certo eles falarem da religião dos outros”, disse a operadora de caixa Jaqueline Oliveira. O fato é que a maioria não tinha ideia do que é um assentamento de orixá. “Minha avó era ialorixá”, disse a consultora de crédito Alessandra Pimentel, uma das poucas a ter noção do que representa um orixá assentado.
Em um comunicado publicado nas redes sociais, o grupo responsável pelo navio pediu desculpas e disse que a publicação foi feita na Alemanha, no dia 22 de outubro, mas que o texto, apagado depois das críticas, não retrata a visão dos integrantes do navio Logos Hope. “O que Exu faz sair da boca de uma pessoa, ninguém pode fazer elas voltarem atrás. O que foi dito tá dito e mostra quem é quem”, criticou Gersonice Brandão, a Mãe Sinha de Xangô, do Terreiro Casa Branca.
O CORREIO procurou a coordenação e a assessoria de comunicação do navio no Brasil, mas elas preferiram não se manifestar. “Eu não sei quem são essas pessoas e nem porque fizeram isso. Todas as religiões têm que ser respeitadas”, comentou Mãe Cici de Oxalá, do Terreiro Aganju e da Fundação Pierre Verger.
Considerado um dos intelectuais mais respeitados do país, o sociólogo e escritor Muniz Sodré disse que a origem de ataques como esse está justamente na ignorância com os assuntos de matriz africana.“Esse tipo de comentário é uma prova do atraso. Não conheço aqui na Bahia nenhum culto ao demônio. Achei isso uma ofensa, uma burrice extraordinária e lamento que alguém tenha ido visitar (o navio). É a ignorância que permite esse tipo de comentário”, criticou Sodré.Potência Mesmo com o provável aterramento ou sucção do assentamento, a arqueóloga Luciana de Castro acredita que o Exu não perde em nada a sua potência. “Ele pode ter sido aterrado, mas o poder dele é intangível. Exu na sua origem é invisível. A sua potência consiste na invisibilidade. Não alterou a sua função. Então ele continua protegendo a Baía de Todos os Santos”, disse Luciana, que considera o aterramento do Exu um crime.
Mas, há esperança. O marítimo Mário Mukeka, que participou daquela primeira operação, acredita que o aterramento jamais foi realizado. O Exu, segundo Mukeka, estaria intocado, no mesmo local. “Pelo que constatei das outras vezes que passei por ali, não se aterrou aquela área. Acho que o Exu ainda está visível”, disse Mukeka, disposto a realizar uma nova operação para encontrá-lo.
Como bom marítimo, Mukeka é cheio de história. Por isso, entregou logo o arqueólogo Leandro Duran, que, impressionado com o achado, teria tentado agradar Exu. “Ele levou balas e guaraná para levar pra Exu. A gente não deixou ele descer, né? Melhor não levar presente nenhum do que dar o presente errado”, disse Mukeka, ciente de que Exu não é Cosme e Damião e gosta mesmo é de farofa de azeite de dendê, cachaça e charuto.
Ebó coletivo vai protestar contra intolerância Um grupo de defesa das religiões de matriz africana realizará um ebó coletivo amanhã, no Terminal da França, em frente ao Porto de Salvador. Ebó é uma oferenda aos orixás. O ato é para repudiar a declaração da organização responsável pelo navio Logos Hope, considerado a maior livraria flutuante do mundo, que atracou em Salvador no dia 25 de outubro. Antes, a organização pediu orações e disse que Salvador é conhecida pela crença das pessoas “em espíritos e demônios”.
Batizado de “O demônio quem traz são vocês! A Bahia é de todos os Santos, encantos e Orixás!”, o protesto está marcado para ser realizado das 10h às 19h.
O texto postado no Facebook pela organização internacional responsável pela embarcação dizia “rezem por um embarque seguro e por uma navegação de dois dias direto para Salvador. Rezem por proteção, força e sabedoria para os tripulantes durante a estadia do navio em Salvador - uma cidade conhecida pela crença das pessoas em espíritos e demônios. Rezem para a equipe de eventos, que se prepara para um novo porto, e que Deus possa ser glorificado ao longo de cada um dos eventos que virão”. A mensagem foi apagada em seguida, após a repercussão.
O ebó coletivo será organizado pela Frente Nacional Makota Valdina. Segundo anuncia a frente, o que os motiva é a “determinação de lutar pela vida e dignidade do povo negro e das religiões de matriz africana no Brasil”. Ogan do terreiro Ilê Axé Torrun Gunan e integrante da Frente Makota Valdina, Eduardo Machado acredita que Exu interferiu para que houvesse uma resposta à agressão.
“Ele jamais ia deixar essa injustiça passar em branco. A interferência dele é total. Vamos realizar esse ato político para afrontar essa intolerância”, disse. “Esse navio deveria trazer conhecimento. Mas ele nos viola com preconceito racial. Já basta o que a gente tem que enfrentar no dia a dia”.
O Ogan ensina que as religiões de matriz africana estão longe de cultuar o demônio. “A gente cultua energia ancestral, forças da natureza, e não demônios. Todo terreiro tem um Exu protetor. A Baía de Todos os Santos também”, avisa
SERVIÇO Livro: O Exu Submerso - uma Arqueologia da Religião e da Diáspora no Brasil Autora: Luciana de Castro Nunes Novaes Editora: Prismas Lançamento: 10/12 Onde: VI Reunião Equatorial de Antropologia (REA), que ocorrerá na Ufba, de 9 a 12/12 nos PAFs I e 3 do Campus de Ondina, em Salvador