Vai ter mulher no jazz, sim! Sem presença de instrumentistas, festival é cancelado

Após resposta polêmica de organização de evento, de não ter encontrado musicistas para tocar, CORREIO traz bate-papo com talentos da Bahia sobre machismo e misoginia no cenário baiano

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  • Da Redação

Publicado em 29 de abril de 2023 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Marina Silva

Valaida Snow sabia tocar saxofone, trompete, clarinete, violoncelo, baixo, banjo, violino, bandolim, harpa e acordeon. Tudo isso aos 15 anos de idade. Em 1922, aos 18, ela rodou os Estados Unidos tocando jazz, ganhando destaque nacional pela sua versatilidade no palco, onde cantava, dançava e tocava trombeta, que viria a ser seu principal instrumento. No auge da carreira, ao invés desta mulher negra ser reconhecida pelo talento, só fez ‘ganhar’ um apelido: ‘Little Louis’. Uma referência a outro trompetista e ícone da música, porém homem, Louis Armstrong. Salvador, abril de 2023. Cerca de 100 anos depois, para comemorar o  Dia Internacional do Jazz, uma casa de show promove um festival do gênero, com mais de 15 atrações. Nenhuma mulher na grade de programação. Dois tempos distintos, mas apenas uma explicação: o machismo patriarcal. 

“Quando subimos ao palco para tocar algo, eles [os homens] nos olham com desprezo. Aquele olhar de reprovação, sabe? Quando mostramos nosso talento, eles falam que ‘tocamos como um homem’”, resume a baterista Lorena Martins, que conta a rotina da mulher no meio musical da capital. Ela poderia estar facilmente na celebração do jazz citada acima, mas não estava. Pior, precisou ler coisas que só comprovam o quanto até mesmo o jazz, nascido no gueto para ser libertador e agregador, está sob os domínios patriarcais. Na grade de programação do festival, exibida pelos organizadores do evento no perfil oficial do Instagram, uma seguidora chamou atenção das atrações: “Eba! Mas... Cadê as mulheres do Jazz?”. A resposta dos organizadores foi um exemplo de desafinação.

“Olha, te garantimos que não foi por falta de vontade nossa não termos mulheres no festival. Você conseguiria citar o nome de 5 mulheres instrumentistas da cena do Jazz de Salvador que poderíamos convidar? Pois nós tentamos, buscamos, e não encontramos”, escreveu a organização do evento, em resposta a seguidora. Os internautas se indignaram, com razão, pela resposta infeliz, inclusive citando diversas mulheres que tocam jazz. 

Os shows estavam marcados para acontecer a partir de quinta-feira (27) e seguiriam até este domingo (30), este último dia justamente a comemoração internacional do gênero musical. Não teve mulher, mas também não houve o evento. Após a enxurrada de críticas, o festival foi cancelado. Em nota, em tom menos machista, os organizadores resolveram repensar e ‘montar uma grade atraente para todos’, explicaram. Já era tarde. Passada esta cena, indagamos: será mesmo difícil encontrar musicistas de jazz em Salvador? Podemos garantir que, em menos de 10 minutos, já tínhamos sete nomes que toparam conversar e falar, além do jazz, como é ser mulher na condição de instrumentista na Bahia, um segmento empossado pelos homens. Ou melhor, pelo machismo. 

Decidimos, então, convidá-las para uma roda de conversa. Desta vez, sem os instrumentos, apenas munidas do lugar de fala. Marcamos no Rio Vermelho e, para elas, episódios como do festival são corriqueiros, nem abalam mais. Isso quando não vem com pacotes mais completos, como casos explícitos de misoginia e assédios. No final, a mulher não precisa ter apenas talento e dedicação. É preciso provar, a todo instante, que merece estar onde está. E, muitas vezes, é preciso algo bem exclusivo para chamar atenção.   Uma verdadeira seleção. Em pé - Neila Kadhí (violão e vocal), Carla Suzart (vocal, guitarra e baixo), Lorena Martins (bateria) e Tamires Estrela (baixo); Sentadas: Kamile Levek (baixo e guitarra) e Daniela Nátali (Clarinetista) "Quando tem a [presença da] mulher, precisa ser algo bem específico. Tipo, ‘noite das mulheres tocando jazz’ ou ‘samba das moças’. Parece algo inclusivo, mas é, na verdade, segregador. É mais algo semelhante a ‘olha, eu estou te dando uma chance, um espaço só de vocês. Divulgue ai seu trabalho e me mostre que é boa’”, conta a musicista Carla Suzart, que toca jazz e tantos outros estilos musicais. Mestra em Educação Musical pela Ufba, Carla diz que projetos específicos femininos são uma forma delas se auto promoverem neste mundo fechado para elas. 

“Vai sempre acabar partindo disso. A gente precisa abrir com fórceps um lugar para nós de forma específica mesmo, para termos espaço. Precisamos fazer algo da gente, de mulheres, para justamente  se auto convidar, se auto produzir, autogerir. Só depois, chega a pessoa para dizer: ‘nossa, tem instrumentista mulher, ela toca muito. Que compositora boa. Vamos convidar elas?’”, completa. 

Outro ponto importante é colocado pela baixista e guitarrista Kamile Levek, doutora em Psicologia da Música. Eventos específicos para mulher gera um conforto, que é justamente a ausência do ego masculino. “Nós nos sentimos muito mais confortáveis trabalhando entre mulheres do que ter homens juntos. Impressionante como um ego masculino contamina todas nós. Nos sentimos melhor, sem julgamento de uma pessoa que nos olha de cima para baixo, num pedestal. A música precisa ser colaborativa, não competitiva. Sem a presença masculina, nos protegemos de muitas coisas, como o risco de sofrer um assédio”, disse. 

Pura rotina: insalubre  Uma pesquisa realizada pela União Brasileira de Compositores (UBC), em 2021, feita com 252 profissionais mulheres da área musical brasileira, de musicistas a compositoras, apontou que 79% das mulheres que trabalham com música  já sofreram discriminação de gênero. Outra pesquisa anterior, de 2019 e produzida pela Data SIM (Semana Internacional da Música), foi além. Ao todo, 1.450 mulheres musicistas foram ouvidas e 21% não se sentem confortáveis no local de trabalho pelo fato de ser mulher dentro do ambiente masculino. 

Pesquisadora e musicista, a norte-americana Erin Wehr reforça a ideia de que o jazz é um local patriarcal, elitista e machista. Quase um paradoxo. No seu livro, ‘Compreendendo as experiências das mulheres no jazz’, ela joga duras críticas ao fato da mulher ser o tempo todo estereotipada dentro deste estilo musical. Tiramos um trecho do livro que reflete bem o que estamos discutindo. 

“A ameaça  estereotipada  pode  ser  mais  prejudicial  para  o  desempenho  das  mulheres  e  reduz a motivação. A possibilidade de associação com percepções negativas do  grupo  existe,  independentemente  do desempenho. Se uma mulher toca como um homem, ela é muito agressiva e estereotipada como uma dama de ferro. Se uma mulher toca como uma  mulher,  ela  é  afeminada  demais  para  ser  levada  a  sério  e  estereotipada  como animal de estimação ou mãe. Se é uma cantora, ela é provavelmente vista no papel de sedutora, e valorizada por sua aparência, em vez de sua contribuição musical”, escreveu no livro. 

A motivação é um fator decisivo para uma instrumentista, principalmente se falamos de jazz, um poço sem fim de improviso. O ritmo é não linear, com uma liberdade do músico fazer seus solos e buscar a improvisação dentro do universo musical. O jazz é compor ao vivo. É pegar seu instrumento e viajar no swing. Agora, pense: quem pode improvisar, se está sendo testada o tempo todo, sob pressão machista e desmotivada pela baixa autoestima? “Muitas vezes, a improvisação do jazz não está ligada nem à parte técnica, mas à autoestima", explica Carla Suzart. 

Tamires Estrela, baixista destaque entre instrumentistas de Salvador, quase desistiu de sua vida musical. Como ela mesma frisa, além de ser difícil viver de música, “a mulher ainda carrega o peso da autoestima baixa, demandas de casa, segurança e [falta de] espaço para produzir e crescer com o seu talento. Nós, mulheres, somos massacradas o tempo todo, em qualquer lugar. Isso me fez parar de tocar por três anos. Parei porque precisava de estabilidade emocional e financeira. Se eu tivesse um pouco mais de autoestima, não teria parado de tocar”, disse Estrela, que hoje se divide entre o trabalho na Orquestra Sinfônica da Bahia e os projetos musicais, que inclui o jazz. 

“É sobre isso, sabe? Outro dia encontrei um casal de músicos numa festa e perguntei sobre os filhos. Ele me disse: ‘Pergunte a ela, eu preciso tocar’. Fiquei perplexa, sem palavras. Ser mulher já vem com uma sobrecarga que a figura masculina não carrega. Enquanto o cara está tocando em mil circuitos de jazz durante a semana, a mulher está cuidando dos filhos, porra. Por que não tem mulher no jazz? É porque elas não fazem apenas este trabalho”, disse a cantora Neila Kadhí. 

Outro ponto que incomoda as meninas do jazz é quando o assunto é rotular o que a mulher deve ou não fazer. Neste gênero musical, o mais comum é ver a figura feminina como cantora, não como instrumentista. “Outro dia estava levando uma bateria inteira no Uber para tocar à noite. É aquele trambolho grande, coloco tudo no carro, entro e o cara pergunta: você é cantora? Aí saímos de ignorantes, né? Pergunto se ele não é piloto de avião”, lembra Lorena Martins.

Especialista em sopro, principalmente o Clarinete, a musicista Daniela Nátali sempre é confundida.   “Mulher não pode ser instrumentista na música. Chego num lugar, sempre me perguntam se eu sou a cantora. Como se fosse o único lugar permitido para a mulher ocupar na música”, disse Daniela, que foi além:  “Na primeira orquestra que eu entrei, me chamavam de profissão beleza. Disse que estava lá só porque era bonita. Sempre tive que provar que estava ali pelo talento, porque sei tocar, não pela beleza”, lembra. Nátali é integrante da Orquestra de Cumbia Sonora Amaralina. É a única mulher. “Lá me sinto segura, pois me respeitam. Sou feliz, tenho liberdade, mas é algo raríssimo no nosso meio”, completa. 

Historicamente, ser mulher instrumentista no Brasil era apenas um status das famílias tradicionais. A filha geralmente tocava piano para exibir aos convidados o quanto aquela família era nobre e de status. Quem iniciou a primeira quebra desta casta foi Chiquinha Gonzaga, que decidiu sair desta condição de atração familiar para ser musicista e compositora, precisando até abandonar sua família para viver seu sonho musical. Ela nunca pôde errar. 

“Temos que comer as partituras, não podemos errar. Se erramos, todas as mulheres erram, pois vem aquela condição de 'tá vendo, tentamos dar a chance para uma mulher e olha o que aconteceu’”, avisa Carla. 

“Uma vez estava num evento de jazz fora de Salvador, não conhecia ninguém lá. Os homens subiam no palco e tocavam. Muitos que não sabiam sequer tocar, mas recebiam apoio nos seus improvisos. Decidi levantar a mão e fui. A banda já estava preparada para uma música, quando um dos caras viraram e me viu colocar a guitarra. Era uma mulher. ‘Não, vamos tocar uma mais fácil pra você’. Foi o que ouvi”, completa Suzart. 

A melodia é esta. A melodia é esta. Em mais de uma hora de conversa, nossas musicistas do jazz baiano explicaram que não querem tomar o lugar de ninguém. Muito pelo contrário, elas só querem o lugar onde se encaixa seus respectivos talentos. É uma questão sobre respeito, liberdade e música, óbvio..

A trompetista Valaida Snow, do início da reportagem, fez tanto sucesso com seu jazz que acabou fazendo diversas turnês pela Europa. Em uma delas, em 1941, foi capturada e presa pelos nazistas. Só conseguiu escapar um ano depois, após um esquema de trocas de prisioneiros. Depois, os críticos musicais alegaram que ela nunca mais foi a mesma, perdendo o brilho. Na época, ninguém nunca questionou o que ela sofreu nas prisões nazistas. Apesar de passar por diversas dificuldades de um homem preto, Louis Armstrong conseguiu se tornar um mito do jazz, um ícone eterno. Um homem.  Dificilmente você, que está lendo esta reportagem, não saberá quem foi Armstrong, mas certamente não conhecia a história de Valaida. É justo? Valaida Snow Deusas instrumentistas do jazz

Lil Hardin:  Foi pianista da banda de jazz Creole, onde conheceu seu marido, Louis Armstrong. Ajudou na carreira do marido, até se separarem. Sem espaço, decidiu parar de tocar.

Nina Simone:  Uma lenda do jazz e blues, Nina foi cantora, pianista e compositora. Se engajou na uta pelos direitos civis nos Estados Unidos e sofria violência doméstica. 

Terri Lyne:  Aos cinco anos, esta musicista do jazz atual ganhou uma bateria do avô. Nunca mais parou. Ano passado, lançou um disco ao vivo e se tornou referência na batera e no jazz. 

Vi Redd:  Atualmente com 94 anos, é considerada uma lenda do jazz com seu saxofone que ela até hoje toca. Ela também canta e sua família sempre esteve envolvido com o jazz e blues. Está no sangue. 

Sweet Emma Barrett:  Pianista e cantora, Emma sempre foi uma referência no jazz. Em 1967, sofreu um derrame e que deixou o lado esquerdo do corpo paralisado. Mesmo assim, continuou tocando até sua morte, em 1981.