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Carol Neves
Publicado em 21 de março de 2025 às 14:57
A música "Cálice", uma das mais icônicas da música popular brasileira, nasceu de um encontro entre dois gigantes da MPB: Gilberto Gil e Chico Buarque. A história por trás da composição, marcada por criatividade, ambiguidades e resistência à censura, foi detalhada por Gil em um relato sobre o processo criativo e o contexto político da época, em um post nas redes sociais nesta sexta-feira (21). A música faz parte da turnê de despedida do artista baiano, Tempo Rei. >
Tudo começou quando a gravadora Polygram decidiu, em 1973, organizar um grande evento com seus artistas, propondo encontros musicais inéditos. O evento foi batizado de Festival Phono 73. A Gil e Chico foi dada a tarefa de compor e cantar uma música juntos. O encontro foi marcado para um sábado de semana santa no apartamento de Chico, localizado na Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro – cenário que, aliás, inspiraria um trecho da letra. >
Antes do encontro, Gil decidiu preparar uma proposta. Na sexta-feira da Paixão, ele se sentou no tatame onde dormia na época e buscou esvaziar a mente para se concentrar. A atmosfera religiosa da data o levou à ideia do cálice de Cristo, referência ao momento em que Jesus, no calvário, pede ao Pai que afaste dele o cálice da agonia. Foi assim que surgiu o refrão da música: "Pai, afasta de mim esse cálice". Em seguida, Gil compôs a primeira estrofe, inspirada por uma bebida amarga chamada Fernet, que Chico costumava oferecer em suas visitas. >
No sábado, ao chegar ao apartamento de Chico, Gil foi recebido com a bebida italiana e apresentou o que havia criado. Ao cantar o refrão, Chico percebeu imediatamente a ambiguidade da palavra "cálice", que, ao ser pronunciada, soava como "cale-se". Essa descoberta deu à música um duplo sentido, associando o sofrimento religioso à repressão da ditadura militar. >
A partir daí, os dois artistas começaram a trabalhar juntos. Como Gil havia levado apenas o refrão melodizado, Chico sugeriu ideias para a musicalização da primeira estrofe. Eles combinaram um novo encontro para continuar a composição. Chico criou mais duas estrofes, e Gil compôs uma terceira, totalizando quatro estrofes em versos decassílabos. >
Na hora de definir a ordem das estrofes, Gil propôs que fossem intercaladas, já que não havia um encadeamento linear entre elas. Chico concordou, e a estrutura final ficou assim: a primeira estrofe de Gil, a segunda de Chico, a terceira de Gil e a quarta de Chico. A terceira estrofe, escrita por Gil, já trazia a influência do tema do silêncio, introduzido por Chico. Nela, frases como "silêncio na cidade não se escuta" e "mesmo calada a boca, resta o peito" reforçavam a ideia de que a censura era uma ilusão, pois a resistência sempre encontrava uma forma de se expressar.>
“O termo, aliás, já aparecia na outra estrofe minha, anterior: ‘silêncio na cidade não se escuta’, quer dizer: no barulho da cidade, não é possível escutar o silêncio; quer dizer: não adianta querer silêncio porque não há silêncio, ou seja: não há censura, a censura é uma quimera; além do mais, ‘mesmo calada a boca, resta o peito’ e ‘mesmo calado o peito, resta a cuca’: se cortam uma coisa, aparece outra”, explicou Gil. >
A música, no entanto, enfrentaria a censura antes mesmo de ser apresentada ao público. No dia do show, logo após Gil e Chico começarem a cantar "Cálice", os microfones foram desligados. Gil suspeita que a música já havia sido vetada pela censura, mas os artistas decidiram desafiar a proibição. "Tenho a impressão de que ela tinha sido apresentada à censura, tendo-nos sido recomendado que não a cantássemos, mas nós fizemos uma desobediência civil e quisemos cantá-la", relembrou Gil. A música foi lançada por Chico Buarque somente em 1978, cinco anos depois do festival.>
Assim, "Cálice" se tornou um símbolo de resistência e criatividade, unindo a dor à luta contra a repressão política. A música, que hoje é um marco da MPB, nasceu de um processo colaborativo entre dois gênios da música brasileira, que transformaram um momento de censura em um hino de liberdade. >
Os artistas cantaram pouco a música juntos. Depois da versão censurada e mutilada no festival Phono 743, 45 anos depois, eles tocaram a canção em 2018, no Festival Lula Livre, no Rio de Janeiro, protestando contra a prisão do então ex-presidente.>
Pai, afasta de mim esse cálice>
Pai, afasta de mim esse cálice>
Pai, afasta de mim esse cálice>
De vinho tinto de sangue>
Pai, afasta de mim esse cálice, pai>
Afasta de mim esse cálice>
Pai, afasta de mim esse cálice>
De vinho tinto de sangue>
Como beber dessa bebida amarga>
Tragar a dor, engolir a labuta>
Mesmo calada a boca, resta o peito>
Silêncio na cidade não se escuta>
De que me vale ser filho da santa>
Melhor seria ser filho da outra>
Outra realidade menos morta>
Tanta mentira, tanta força bruta>
Pai (pai)>
Afasta de mim esse cálice (pai)>
Afasta de mim esse cálice (pai)>
Afasta de mim esse cálice>
De vinho tinto de sangue>
Como é difícil acordar calado>
Se na calada da noite eu me dano>
Quero lançar um grito desumano>
Que é uma maneira de ser escutado>
Esse silêncio todo me atordoa>
Atordoado eu permaneço atento>
Na arquibancada pra qualquer momento>
Ver emergir o monstro da lagoa>
Pai (pai)>
Afasta de mim esse cálice (pai)>
Afasta de mim esse cálice (pai)>
Afasta de mim esse cálice>
De vinho tinto de sangue>
De muito gorda a porca já não anda (cálice)>
De muito usada a faca já não corta>
Como é difícil, pai (pai), abrir a porta (cálice)>
Essa palavra presa na garganta>
Esse pileque homérico no mundo>
De que adianta ter boa vontade>
Mesmo calado o peito, resta a cuca>
Dos bêbados do centro da cidade>
Pai (pai)>
Afasta de mim esse cálice (pai)>
Afasta de mim esse cálice (pai)>
Afasta de mim esse cálice>
De vinho tinto de sangue>
Talvez o mundo não seja pequeno (cálice)>
Nem seja a vida um fato consumado (cálice, cálice)>
Quero inventar o meu próprio pecado>
(Cálice, cálice, cálice)>
Quero morrer do meu próprio veneno>
(Pai, cálice, cálice, cálice)>
Quero perder de vez tua cabeça (cálice)>
Minha cabeça perder teu juízo (cálice)>
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (cálice)>
Me embriagar até que alguém me esqueça (cálice)>