Caetano Veloso encanta o Festival de Verão com sua última Transa em Salvador

Show começou, com atraso, após a meia-noite

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  • Maysa Polcri

Publicado em 29 de janeiro de 2024 às 00:52

Caetano Veloso Crédito: Arisson Marinho / CORREIO

Juntos, a saudade latente no peito exilado e o encontro com referências no entrangeiro, formaram o caldo perfeito para o álbum publicado no início da década de 70 que, mais tarde, seria considerado um divisor de águas na carreira de Caetano Veloso. Passados 52 anos, o compositor voltou a emocionar o público baiano com as canções de Transa, que há muito tempo não eram ouvidas por aqui. O plano de fundo escolhido para tamanha celebração foi o Festival de Verão, onde Caetano se apresentou já na na madrugada de segunda-feira (29), depois de abrir exceção nas "férias radicais".

Ao som de You Don't Know Me, Caetano deu início a apresentação 00h30, com pouco mais de uma hora de atraso. Em seguida, entoou os versos de Irene, música escrita para sua irmã. "Poxa, vida! Transa na Bahia!", comemorou, para a alegria de fãs anônimos e famosos, como Marieta Severo, Seu Jorge e Preta Gil.

Depois de meia hora de show, Caetano chamou para tocar ao seu lado os companheiros de criação do álbum: Jards Macalé, Tutty Moreno e Áureo de Souza. Basta dizer que a sinergia entre eles faria qualquer teletransporte de filme de ficção sentir inveja. Pareciam os mesmos jovens que, no ano de 1971, em plena Ditadura Militar, gravaram o disco de capa vermelha que continuaria a ecoar por aí. O público escutou You Don't Know Me, canção que abriu a apresentação, novamente. 

Ainda deu tempo para que artistas apresentassem Sem Samba Não Dá, do álbum mais recente Meu Coco (2021), e Mora na Filosofia, que faz parte de Transa. Assim, revezando entre músicas da era pré e pós-Transa, Caetano embalou o público do Festival de Verão. Qualquer desavisado que estivesse presente na plateia provavelmente se assustaria, afinal, mantendo a proposta de seguir o repertório da década de 70, Caetano não trouxe para palco grandes clássicos, como A Luz de Tieta e Reconvexo.

Não ficaram de fora homenagens a outros artistas. Transa, afinal, não existiria se não fossem as referências do compositor baiano. No álbum, ele se refere a si próprio e abre espaço para artistas de todos os gêneros. Em You Don't Know Me, o agradecimento ao "povo brasileiro" veio de Hora do Adeus, gravada por Luiz Gonzaga.

Já as duas primeiras estrofes de Triste Bahia surgiram de uma adaptação de um poema de Gregório de Mattos, o Boca de Inferno. Caetano ainda fez questão de lembrar do compositor Moacyr Albuquerque, que participou da primeira gravação e faleceu nos anos 2000. 

História

Caetano não esconde que os versos das sete faixas de Transa foram escritos sob dor. Na época, o cantor estava exilado em Londres, assim como Gilberto Gil, parceiro de longa data - é o que explica as letras bilíngues. A Tropicália havia ganhado força e incomodava os figurões do regime militar, que acharam por bem expulsar os cantores do país. Este domingo mostrou, mais uma vez, quem estava do lado certo da história. Fato é que o álbum caiu no gosto do povo.

O show marcou, provavelmente, o encerramento da mini turnê do álbum. No caso dos soteropolitanos, a chance de vivenciar o momento histórico já estava sendo, aos poucos, esquecida. Caetano apresentou Transa em agosto do ano passado no Festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro, e em São Paulo. 

Até então, não havia perspectiva de repeteco em Salvador, pelo menos entre a imprensa, até que Zé Ricardo, que assina a direção artística do Festival de Verão, fez o convite ao compositor. Audacioso, o diretor furou a bolha das férias de Caetano, anunciada dias antes do Natal. Os últimos shows do cantor foram na Concha Acústica, em Salvador, entre 15 e 17 de dezembro.

Pouco importa se o retorno antecipado aos palcos foi contraditório, o público, na verdade adorou a pausa no descanso e compareceu em peso ao show. Cabe aqui uma menção ao nome de batismo do álbum. Transa, na década de 70, era usado para descrever alteração de movimentos e ainda não tinha o sentido majoritariamente sexual que lhe foi dado com o passar dos anos. O álbum, então, desde a criação, dava indícios de que representaria uma virada na carreira do artista. Caetano retornou ao Brasil em 11 de janeiro de 1972, depois de dois anos exilado.

Mas você sabe o que faz Transa ser tão importante? Confira abaixo cinco curiosidades sobre o álbum que marcou a vida e a carreira de Caetano Veloso.

REGGAE PRESENTE

Durante o período que esteve exilado, Caetano Veloso morou no bairro Notting Hill, onde teve contato com a comunidade jamaicana da Inglaterra. No início dos anos 70, o cantor Bob Marley ainda não havia ganhado dimensão internacional. Caetano foi, portanto, um dos primeiros a trazer as batidas do gênero musical para o Brasil, através da canção Nine Out Of Ten.

TRANSA COM TRETA

A relação dos amigos Caetano Veloso e Jards Macalé, diretor criativo do álbum, ficou estremecida na década de 70. O motivo? A ausência do nome de Angela Ro Ro nos créditos de Transa. Sete anos antes de se firmar como cantora no Brasil, Angela participou da canção Nostalgia tocando gaita. Caetano se justificou em entrevistas ao longo dos anos 2000, sempre dizendo que, quando o álbum foi gravado, nomes de músicos não era usualmente colocados na ficha técnica.

O erro foi reparado em 2006, com a reedição de Transa. "Fiquei de mal com Jards Macalé porque ele ficou me agredindo na imprensa. Mas ele mesmo criou e descriou a briga pela imprensa", disse Caetano na época. Felizmente, o imbróglio não perdurou.

A AMIGA, GAL

Parceira da banda Doces Bárbaros, a cantora Gal Costa (1945-2022) participou da gravação original de Transa. Ela foi backing vocal nas faixas Neolithic Man, Nostalgia e You Don't Know Me. Nesta última, Gal interpõe versos da composição Saudosismo, de 1967, um dos marcos iniciais da carreira dela e de Caetano.

QUEBRA-CABEÇA

Em uma época na qual os streamings estavam longe de existir, Transa foi um dos discos mais autênticos já inventados. O "discobjeto" - como foi consagrado - era vendido com uma capa montável, que se transformava em um triângulo. O LP foi idealizado pelos artistas Aldo Luiz e Álvaro Guimarães.

RECONHECIMENTO

Transa não contém as músicas mais conhecidas do cantor baiano, isso é fato. No entanto, a originalidade do álbum rende reconhecimentos até os tempos atuais. Em 2007, Transa foi eleito como o 10° melhor disco brasileiro de todos os tempos, pela versão nacional da revista especializada Rolling Stone. Mais tarde, em 2016, a música You Don't Know Me foi eleita pela revista americana Pitchfork como uma das 100 melhores músicas da década de 1970.

SENTIDO DA VIDA

Apesar de não esconder que Transa foi feita na onda da melancolia do exílio e da saudade de casa, o álbum teve importância para a vida pessoal de Caetano Veloso. Àquela altura, ele já tinha gravado o disco que leva o seu nome, mas a reunião de amigos brasileiros para Transa, garantiu um vigor a mais no período em que esteve forçadamente no estrangeiro.

"Aprendi a gostar fisicamente de coisas para as quais nem dava atenção antes —os gramados dos parques, os bancos de madeira que havia em todos eles, a graça das ruas curvas, chamadas ‘crescents’, os táxis confortáveis", contou Caetano em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, em agosto do ano passado. Naquele mês, o cantor apresentou Transa no Festival Doce Maravilha, no Rio de Janeiro.

Mas o Festival de Verão não acaba por aqui. Além de Caetano Veloso, ainda se apresentam esta noite Seu Jorge e Mano Brown, no palco Ponte, e Teto e Matuê, no palco Cais. A mistura de ritmos e artistas é a marca do evento, que completa 25 anos.