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Doris Miranda
Estadão
Publicado em 1 de maio de 2025 às 06:00
Tudo começou com uma inesperada dor no próprio joelho e a observação mais atenta à fragilidade da mãe centenária. “Foi quando o tema da velhice passou a me interessar”, conta a escritora e historiadora Mary Del Priore, 73, que fez uma intensa pesquisa para escrever Uma História da Velhice no Brasil (Ed Vestígio / R$ 75).>
É um retrato das distintas formas como a sociedade brasileira convive com a velhice desde a época da Colônia até os dias atuais, alternando descaso com cuidado e acolhimento. O assunto ganha mais relevância nos dias atuais, quando estatísticas apontam um crescimento progressivo da presença de idosos na sociedade. Em 2022, o número de brasileiros com mais de 65 anos cresceu 57,4% no comparativo de uma década. Já são 10,9% (22,2 milhões) do total de habitantes no país.>
“A médio prazo, teremos um Brasil cheio de rugas”, diz Mary, que enfrentou dificuldades para encontrar dados. “Mas, os velhos foram absolutamente invisíveis aos nossos olhos até o início do século 19”, completa. Ela conta que os velhos começaram a ser ‘computados’ a partir do século 19: “[Ser velho] Ou era um desígnio de Deus, ou do diabo, que também dizia que os pecadores viviam mais graças a ele”.>
Mary Del Priore compilou dados que ajudaram a descobrir como os indígenas e os escravizados africanos lidavam com seus idosos. Segundo ela, a velhice era símbolo de poder e de proximidade com os deuses: “Apenas aqueles muito velhos poderiam se comunicar com os ancestrais. Eram homens com um poder muito grande em suas comunidades. Nas senzalas, eles organizavam as uniões, dirimiam as tensões e eram chamados pelos senhores de engenho quando havia um conflito a ser resolvido. Formavam também as correias de transmissão de valores, histórias e saberes para os mais novos”>
Piore descobriu que os europeus ficavam fascinados com a longevidade dos indígenas brasileiros, cometendo até incríveis exageros: durante a invasão francesa no Maranhão, em 1612, o capuchinho Claude d’Abbeville contou ter batizado o pai do maior morubixaba do Maranhão, que teria “160 e tantos anos e já enxergava pouco por conta da velhice”.>
“O brasileiro comia pouquíssimo e era exatamente essa pobreza alimentar que lhe garantia o vigor, a capacidade de sobreviver”, afirma Mary. “Era uma dieta de farinhas, de milho ou mandioca, com peixe seco ou carne-seca, pequena caça, frutas e verduras nativas, o que acabou por dar uma longevidade aos nossos ancestrais”, explica.>
Progresso>
O modo de vida dos idosos daquela época ajudava para reforçar essa invisibilidade: os idosos quase não saiam de casa, a não ser para missa ou procissões. A partir do século 20, os velhos começam a sair de casa para fazer compras, visitar parentes, encher os hospitais e morrer mais tarde. >
A literatura também ajudou, mas com visões diferentes. José de Alencar tinha a velhice como sinônimo privilégio. Machado de Assis criou velhos doentes e solitários. Já Joaquim Nabuco ilustrava o efeito provocado pelo progresso nos mais velhos. Surgiram automóveis que ele não dirigia, esportes que ele não praticava, rádio que ele não ouvia, máquinas a vapor nas fábricas e nas fazendas, tomando o lugar de gente com quem ele conversava. “O velho se tornou estrangeiro num mundo que lhe exigia demais”, pondera.>
O progresso trouxe comodidade, variedade de remédios e até dentaduras. O outro lado da moeda, para recolocar o velho na posição de inútil, chegou em 1923, com a implantação da aposentadoria. “Muitos, ao deixarem o trabalho, não tinham outra atividade, o que incitou vários ao alcoolismo e até a suicídios. O chefe de família, de repente, teve de lidar com um vazio e com uma ameaça ao seu papel como provedor”, explica Piore.>
A autora reforça que as “mudanças na sociedade são hoje um desafio para os idosos, obrigados a lidar com solidão, falta de dinheiro, saúde e a própria família”: “Por outro lado, o velho de hoje busca se adequar à tecnologia. Ele ganhou importância ao se transformar em consumidor”.>
Ao terminar o livro, a historiadora percebeu que a dor no joelho tinha ido embora, mas sua mãe também: “Morreu à antiga, em casa, com a filha e o neto ao pé da cama”.>