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Fernanda Santana
Publicado em 22 de fevereiro de 2023 às 06:00
- Atualizado há 2 anos
Quando ganhou as ruas da cidade, o Carnaval de Salvador se resumia ao Centro (Rua Chile) e a elite local tentava tomar para si o papel de ditar o que podia, e o que não. Era fim do século 19 e o propósito de limitar a liberdade dos foliões - sobretudo os pretos e pobres - aos moldes higienistas europeus não deu muito certo: o Carnaval rompeu a fronteira dos clubes, inverteu a ordem urbana e firmou sua diversidade por novos circuitos.>
O Carnaval, chamado por esse nome, aconteceu pela primeira vez em Salvador em 1884. Antes, chamava-se Entrudo, uma festa com brincadeiras, importada do Sul da Franca. Só naquele ano um clube soteropolitano, o Cruz Vermelha, botou um carro alegórico na rua e a manifestação recebeu o nome de Carnaval. >
Desde então, caíram por terra as tentativas de conter o Carnaval. Em 1950, a invenção do trio elétrico revoluciona a sonoridade da folia E o Axé Music, inventando 30 anos depois, transformaria o tamanho da festa - exportado para o Brasil, o Axé virou sinônimo de Carnaval e passou a atrair milhões de turistas para a cidade no fim de fevereiro.>
Nos anos 1980, ainda acontecem dois movimentos transformadores para a festa: a criação do circuito Dodô (Barra) e a transferência da organização do Carnaval do Governo da Bahia para a Prefeitura de Salvador. A gerente de Carnaval da Empresa Salvador Turismo, Merina Aragão, lembra que, nessa época, as estruturas eram tão deficitárias e o Carnaval tão menor em tecnologia que os "praticáveis dançavam" conforme a altura do som. >
A quantidade de dias de Carnaval cresceu junto com a festa: de seis a dez, com a inclusão de novos eventos pré-carnavalescos. "Acho que o Carnaval do futuro tem um grande futuro. O Centro da cidade vai voltar com um outro formato, mas com o seu vigor e sua força de ser o Carnaval mais tradicional da Bahia. A tendência do bloco sem corda, do folião pipoca, é forte e cada vez mais os artistas querem sair sem estrutura de bloco normal. O vigor do Carnaval, e sua força, continuam", vislumbra Merina Aragão para o futuro. Se o presente for a base, o futuro ainda aponta um Carnaval mais espraiado pela cidade. Nesta edição, ao menos oito bairros receberam shows de artistas. No horizonte, ainda pairam perguntas: o circuito da Barra-Ondina migrará para a Boca do Rio? O presidente da Saltur, Isaac Edington, afirma que, por ora, a proposta está arquiva, o que não exclui a possibilidade. >
Sobre a música, o sociólogo Fábio Baldaia aponta três influências que devem se fortalecer - e repercutir no que se ouvirá no Carnaval. "Um primeiro movimento é local, de reprocessar as influências locais, colocar em uma linguagem moderna. Uma segunda influência são as músicas que fazem sucesso nacionalmente, como o sertanejo. E a terceira influência, da música eletrônica", explica. >
O CORREIO listou 10 momentos que sintetizam e explicam a transformação do Carnaval ao longo dos anos: das festas de clube aos blocos com corda, da manifestação popular ao negócio, dos blocos afros aos camarotes privados. É para lembrar o passado e vislumbrar o que vem. >
CARNAVAL DO CENTRO – E DOS CLUBES O Carnaval de Salvador existe desde o século 19, mas começou a se popularizar pelas ruas de Salvador – especialmente a Rua Chile – no século 20. Havia desfiles pelas ruas e festas nos clubes, sendo os principais o Do Cruz Vermelha e o Fantoches. Os carros alegóricos eram parte essencial da festa e traziam um tema a cada ano. Sem aparelhos sonoros potentes, as canções eram instrumentais, uma mistura de marchinhas, frevo e samba. >
Não havia corda entre o folião e os carros. Tentava-se importar um modelo europeu e manifestações afrobaianas sofriam reprimenda. No livro História do Carnaval da Bahia, Nelson Cadena narra como o desfile de um afoxé de origem africana, em 1895, atiçou o racismo da elite baiana, que cobrou a proibição desses grupos das ruas. Só em 1914 a proibição foi derrubada. Carnaval nos clubes (Foto: Arquivo CORREIO) >
O NOVO SOM DO CARNAVAL>
Uma das transformações mais fundamentais para o Carnaval de Salvador foi a invenção de um instrumento precursor da guitarra baiana, nos anos 1940. O eletrotécnico Adolfo Nascimento, que gravaria o nome na história como Dodô, foi quem experimentou amplificar o som do violão por meio de um experimento: tirou o corpo do instrumento, do qual restou apenas o braço.>
O sistema de amplificação do instrumento, ligado diretamente à boca do violão (parte central do instrumento), se tornou um dos precursores da guitarra baiana. Utilizada por mestres como Armandinho e também, depois, por artistas do Axé Music e, mais adiante, por bandas como a Baiana System, a guitarra baiana virou um dos símbolos do Carnaval de Salvador.>
O TRIO ELÉTRICO Se o Carnaval de Salvador ganhou a dimensão atual é porque, em 1951, os amigos Adolfo Nascimento, o Dodô, e Osmar Macedo tiveram a ideia de fazer uma gambiarra para amplificar o som de duas guitarras baianas por meio de um gerador de um Ford T 1929 (apelidado de Fobica). Surgia ali o protótipo do trio elétrico, que desfilava nas ruas do centro de Salvador (chamadas, no futuro, de Circuito Osmar).>
Em 1953, o trio elétrico já estava estabelecido em um caminhão. Cada grupo musical passou a desfilar em um caminhão eletrizado, modelo que avançou conforme as novas tecnologias e o movimento musical que emergiria na Bahia nos anos 1980 (o Axé Music). O trabalho de Orlando Tapajós também entrou para a história: o construtor deu ares de superestrutura aos caminhões, aos quais acrescentou a carroceria de metal, banheiro, escadas e até elevador. A velha Fobica (Foto: Arquivo CORREIO) >
BLOCOS AFROS E NOVOS CANTORES >
Nos anos 1970, aconteceram dois movimentos importantes para o Carnaval de Salvador: em 1975, Moraes Moreira cantou pela primeira vez em um trio elétrico, o que deu início à tradição de cantores de trios; e um ano antes, no bairro do Curuzu, dois amigos, Antônio Carlos (Vovô do Ilê) e Apolônio Souza, criaram uma agremiação carnavalesca exclusiva para pessoas negras, o Ilê Aiyê.>
Moraes Moreira, o cantor pioneiro (Foto: Arquivo CORREIO) >
O Ilê Aiyê trouxe novas estéticas musicais e de figurino para o Carnaval de Salvador, com fantasias inspiradas em cores vibrantes e que remetiam a estampas africanas. O Ilê ainda pavimentou o caminho para a criação de blocos afros que surgiriam naquela década, como o Malê Debalê e o Olodum, ambos de 1979, e blocos afros mais novos. >
O início do Ilê (Foto: Divulgação/Ilê Aiyê) >
O AXÉ MUSIC Quando chegou aos trios elétricos, Luiz Caldas ficava incomodado com a falta de espaço para gêneros musicais que não o frevo ou o merengue. “Eu já vinha tocando de tudo, rock, frevo, valsa. Daí nasce o Axé Music, dessa inquietação de querer algo diferente”, conta Luiz Caldas, que, depois do lançamento do álbum Magia, em 1985, passou a ser conhecido como o criador do Axé. >
A nova vertente musical revolucionou o Carnaval de Salvador e consolidou o formato dos trios elétricos. Os blocos existentes na cidade – como o Traz os Montes, da banda Scorpius (Chiclete com Banana) - também passam a aderir ao trio elétrico nessa época e criam um modelo de bloco com cordas. Axé inventado por Luiz Caldas revolucionou o Carnaval (Foto: Arquivo CORREIO) >
NOVO CIRCUITO, NOVA ORGANIZAÇÃO >
O Carnaval estava, até 1988, focado no centro da cidade. Só naquele ano a Barra entra no circuito da festa: o Olodum é o primeiro grande bloco a desfilar no circuito, batizado Dodô apenas em 1992. A criação de um novo circuito acontece paralelamente à transferência da organização da festa do Governo da Bahia para a Prefeitura de Salvador. O planejamento do Carnaval era feito pela Bahiatursa, órgão ligado ao Governo da Bahia. >
Em 1986, o prefeito Mário Kertész delegou ao Executivo municipal a festa. Essas mudanças conduzem o processo de empresarização do Carnaval, que passa de manifestação popular, apenas, para negócio. O recém-criado Circuito Dodô (Foto: Arquivo Correio) >
OS CAMAROTES A segunda metade dos anos 1990 marcou a invenção de um novo equipamento para o Carnaval: o camarote. A ideia era oferecer um ambiente com vista para a passagem dos trios, mas privado e com bem mais conforto. A promoter Lícia Fábio e a cantora Daniela Mercury foram as pioneiras desse ramo. Em 1996, nasceu o camarote que levava o nome da cantora, inspirado nos modelos existentes nos sambódromos do Rio de Janeiro e São Paulo.>
Dois anos depois, a criação do Expresso 2222, do casal Gilberto e Flora Gil, consolidou o negócio sob outra perspectiva: uma festa para convidados. O que nasceu para ser um local de reunião entre a família se transformou um perímetro disputado do Carnaval na cidade. Em 1996, Daniela Mercury lançou camarote (Foto: Arquivo CORREIO) >
NOVA DIMENSÃO, NOVAS INVENÇÕES >
A virada do século marca também o reconhecimento da dimensão do Carnaval de Salvador e novas invenções para a festa. Em 2005, o Guinness Book (que registra recordes pelo mundo) elege o Carnaval de Salvador como maior Carnaval de rua do mundo. Entre os trios elétricos, cresce a disputa por tamanho e potência – tanto que os trios ficam cada vez maiores. >
Daniela Mercury, nessa década, foi pioneira em levar música eletrônica e orquestra para cima do trio, além de ter mexido na estrutura do caminhão: criou mais um patamar, acima dos músicos, para os bailarinos.>
FURDUNÇO E MAIS FESTA>
A impressão de que o Carnaval de Salvador está maior não é equivocada. O ano de 2014 foi fundamental para consolidar o alargamento do evento a partir das festas pré-Carnaval. O Movimento Furdunço, como foi chamado no primeiro ano, surgiu para fortalecer o Carnaval dos micros trios e fanfarras. Do circuito Osmar (Campo Grande) migrou para um circuito criado em 2015, o Tapajós, de Ondina à Barra. >
Em 2015, o Furdunço, previsto para o sábado pré-Carnaval, ganhou a companhia do Fuzuê, no domingo. No fuzuê, passaram a desfilar trios elétricos, como o da Baiana System. Esses movimentos, somados ao pré-Carnaval tradicional da quarta-feira na Barra, elevaram o número de dias do Carnaval de cinco para dez. Isso porque a segunda e terça que precedem a folia também foram preenchidas com fanfarras e micro trios. Furdunço em 2023 (Foto: Paula Fróes/Arquivo CORREIO) >
MAIS PIPOCA, MAIS CENTRO, MAIS BAIRROS O retorno do Carnaval neste ano, depois de dois anos de proibição devido à pandemia da covid-19, marcou tendências em desenvolvimento na última década: mais espaço para o folião pipoca e destaque para o Carnaval de bairros.>
Neste Carnaval, ao menos oito bairros receberam apresentações de artistas. O propósito desses eventos descentralizados é, justamente, evitar a extrema lotação dos principais circuitos da folia – o Dodô e o Osmar. Já o folião pipoca teve mais espaço para brincar nos circuitos tradicionais - foram mais de 160 trios sem corda. >
A presença recorde de foliões no Centro da cidade, segundo o prefeito Bruno Reis, aponta a possibilidade de revalorização de um circuito que, já há muitos anos, vem ficando à sombra do circuito Dodô. >
O Correio Folia tem patrocínio da Clínica Delfin, apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador e apoio da Jotagê e AJL>
Circuito Osmar (Foto: Jefferson Peixoto/Secom) >