Fantasias 'proibidonas': por que alguns consideram inadequado homem sair de mulher

Vestimentas de etnias ou minorias marginalizadas, além de grupos religiosos, são criticadas

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 23 de fevereiro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Uma “barreira” de freiras surge saltitante e cercada por um elástico no meio da Rua Marques de Leão, na Barra. São homens vestidos de religiosas. Um misto de ousadia e graça. Mas, o que será que o padre acha disso? O que será que as verdadeiras freiras acham disso? O que será que o católico mais fervoroso acha disso? Se você ainda não parou para pensar que uma indumentária carnavalesca pode agredir alguém, muita gente não só já fez isso como passou a condenar este tipo de fantasia.

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Esse é o Carnaval em que algumas vestimentas foram eleitas como “proibidonas” ou, digamos, inadequadas. Fantasias que se referem a minorias, etnias historicamente marginalizadas ou grupos religiosos estão sendo atacadas por ativistas. Alguns dos que defendem, por exemplo, as causas indígenas têm criticado a tradicional fantasia de índio. Folião se veste de índio (Foto: Marina Silva/ CORREIO) Mas há também críticas a quem se veste de mulher, o que seria um desrespeito à população LGBTQI ou às mulheres pertencentes a grupos específicos, como prostitutas. E, claro, os integrantes de variadas religiões torcem o nariz para os fantasiados de padre, freira, Iemanjá...

Ou seja, ao vestir-se de mulher e de religiosa, o grupo de freiras que passava pela Marques de Leão está contrariando o politicamente correto duas vezes. “Eu acho uma besteira isso aí. A gente se veste assim como uma brincadeira”, disse o operador de telemarketing Everildo Rodrigues, 33 anos, uma das freirinhas. O colega de noviciado, o vendedor Patrick dos Santos, 28 anos, vai um pouco mais fundo na discussão.

“Na verdade nem é só uma brincadeira. A gente faz pra contrariar também. Porque eu não concordo com as coisas da igreja, por exemplo. Então, Carnaval é pra isso também, entendeu?”, afirmou Patrick. No Carnaval de Salvador, é possível encontrar muita gente usando as fantasias que seriam inadequadas. Homem vestido de mulher, claro, se vê aos montes. Aliás, eles formam blocos inteiros, alguns gigantescos como As Muquiranas. “Cara, essa patrulha tá passando dos limites”, disse Ezequiel dos Anjos, 35 anos.“Alguns homens vestidos de mulher apresentam o feminino de forma muito caricatural, de forma ridícula. Acaba mantendo a lógica de inferiorizar o feminino. No caso de nós, pessoas transexuais, gera um constrangimento. Eu sou uma mulher travesti, transexual, e no Carnaval quando vou à padaria, as pessoas perguntam se estou fantasiada, mas eu estou apenas indo comprar pão. Assim é a minha identidade, não é fantasia”, destacou ao jornal O Tempo a criadora da ONG Transvest, Duda Salabert.“O homem se vestir de mulher é só um relaxamento da ordem cotidiana, da normalidade. É uma brincadeira com os limites normais. O homem que comete uma agressão contra mulher independe se ele está vestido de mulher ou de homem”, afirma o pós-doutor em história pela Ufba, Milton Moura. “No Carnaval, o que tem de homem vestido em trajes masculinos e que acabam agredindo mulheres não tá no gibi”, observa o estudioso.

Iemanjá Vez por outra, brota no Carnaval até mesmo alguém vestido de entidade do candomblé ou umbanda. Uma mulher que estava de Iemanjá não quis entrar na discussão porque daria uma opinião “controversa”. O curioso é que a amiga, ao lado, discordava de que Iemanjá fosse utilizada como fantasia.A artista plástica Jana Dourado tem receio da banalização. “Tenho um respeito, uma reverência muito grande a essas entidades. Sou espírita e tenho um pé no Candomblé. Me incomoda porque eu tenho reverência. Entendo que a fantasia pode entrar em um lugar da banalização”, disse.O dançarino e filósofo baiano Van Sena escreveu um texto sobre o assunto e que gerou muitas discussões nas redes sociais. Ele não vê problema direto no fato de o orixá ser relacionado com o Carnaval, mas sim em utilizar na festa elementos litúrgicos ou idênticos aos que são usados nas celebrações. O texto foi elaborado depois que o blogueiro Spartacus se vestiu de Oxum para o Carnaval

“Sempre digo que orixá está na nossa vida como um todo: na espiritualidade, nas emoções e sentimentos, na sexualidade e também no Carnaval. Talvez haja problema não em você se fantasiar de Orixá, mas em levar os elementos sagrados de forma verossimilhante ao que existe nos espaços litúrgicos”, observa Van.

“As paramentas das divindades do Candomblé são consagradas e passam por fundamentos. Deixou de ser apenas objetos e simples vestes. Temos que ter cuidado e respeito ao se fantasiar, sim. Sempre sugiro que as pessoas façam versões contemporâneas e mais distantes do que está no culto. Como fez o Spartacus. Se eu bem conheço Oxum, ela iria para o Carnaval e faria coisas bem melhores do que só beber e se divertir”, brincou.

Vestidos de padre, os amigos Ícaro Suckerman, Paulo César Reis e Thiago Banha, do perfil Frases de Baiano no Instagram, bombaram nas redes sociais no início desse Carnaval. Saíram de bata e ainda penduraram a plaquinha nos pescoços: “Já pecou hoje?”. “Eu nunca foi criticado na rua por causa da fantasia, o intuito não é desrespeitar ninguém. É uma brincadeira que eu faço com amigos há muito tempo e não vejo com maldade me vestir de padre ou de freira”, afirma Paulo César.

Índios: homenagem ou racismo? A tradicional fantasia de índio talvez tenha sido a primeira a ser criticada por grupos indígenas e movimentos sociais. Está um burburinho nas redes sociais desde que a artista indígena Katú Mirim publicou um vídeo explicando por que o uso desses trajes é algo racista e lançou o protesto #ÍndioNãoÉFantasia.

“Isso é racismo. Indígenas existem, resistem e temos cultura”, diz. No post, a ativista foi atacada com comentários preconceituosos, como “índio que é índio mora no mato” e “volta para a aldeia”. “Usar fantasia de índio é racismo porque discrimina nossa raça, fortalece o estereótipo do índio folclore e a hipersexualização da mulher indígena”, explicou Katú em entrevista ao site Catraca Livre.

No circuito Barra / Ondina, as amigas Ana Lúcia Ribeiro, 38 anos, e Camila Soares, 35, estavam cada uma com seu cocar. Sempre se vestem de índio para “homenagear” esses povos. E, no caso delas, há um motivo primordial. Elas são paraenses e mantêm contato direto com esses povos. “Tenho um tio padre que faz um trabalho com os indígenas. Sempre hospedo índios lá em casa”, disse Ana Lúcia. “A minha intensão é usar o Carnaval para homenagear”. As amigas Ana Lúcia e Camila são do Pará e defendem que o cocar é uma homenagem ao povo indígena (Foto: Alexandre Lyrio/ CORREIO) Aí é que está. Na intenção de cada um talvez esteja o ponto crucial da questão. Segundo Milton Moura, o mais difícil é saber o que cada um visa destacar com cada fantasia. “São representações estereotipadas, é verdade. Mas não vejo como desrespeito. Considero um exagero dos movimentos sociais. Está se criando uma ética do politicamente correto que é intransigente e intolerante”, diz Milton Moura.

Para Moura, faltam utopias políticas mais amplas. “Estamos vivendo esse momento de falta de utopias que pudessem congregar mais esses movimentos. Aí eles começam a brigar em cima de questões menores, aspectos de representação de identidade. Faltam utopias abrangentes”, acredita.   

Mas, segundo a artista indígena Katú, a palavra “fantasia” tem uma conotação de falsidade, de algo que não existe. “Os povos indígenas já são estereotipados e discriminados, e a sociedade só lembra da nossa existência quando lhe convém, como é o caso da fantasia, que pega os nossos símbolos sagrados e os transforma em mercadoria e meros adornos descartáveis”.

Portanto, cocar, pinturas e saia com penas pode ser visto como uma agressão durante o Carnaval. Segundo pensam essas pessoas, o que seria uma homenagem na verdade disfarça a banalização de um problema. A prática é considerada racista por se apropriar da cultura de povos que até hoje são vítimas de genocídio. Mas, há até indígenas que discordam disso.

Prefeitura de Belo Horizonte fez cartilha indicando fantasias inadequadas   O tema ganhou discussão nacional e chegou a virar política pública em Belo Horizonte. “Fazer piada da história e sofrimento de alguém não tem a menor graça, não é mesmo?”. Foi assim que a prefeitura local sugeriu uma reflexão aos foliões que vão aproveitar o Carnaval na capital mineira. O uso de fantasias que desrespeitam grupos da sociedade e a entoação de marchinhas com conteúdos machistas, por exemplo, devem ser evitados.

O documento foi publicado no dia 13 de fevereiro no Diário Oficial do Município e ressalta a necessidade de manter o respeito com as minorias. Além disso, as marchinhas também não devem reproduzir o que seria racismo velado. “Teu Cabelo não nega”, “Mulata Bossa Nova” e “Nega Maluca” seriam “exemplos de músicas que materializam o imaginário social pejorativo em estereótipos”.

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