A história de alemães confinados em campo de concentração baiano

Cidade no sudoeste baiano foi escolhida pelo Estado para receber considerados prisioneiros da Segunda Guerra, mas as marcas desse passado esbarram em mistérios

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  • Fernanda Santana

Publicado em 28 de outubro de 2023 às 05:00

Helmut Stelter
Helmut Stelter, um dos alemães enviados para Maracás Crédito: Acervo Pessoal/Angélica Stelter

No quintal de um sindicato inativo, está um dos símbolos de um passado quase esquecido de Maracás, no sudoeste da Bahia. É a escultura de Nossa Senhora Santana, feita a cimento e cal pelo antigo morador daquela casa, um alemão que chegou na região em 1943 com 200 compatriotas. Todos foram embarcados até lá pelo governo baiano para viver, isolados do mundo exterior, em um campo de concentração.

Maracás está a 350 quilômetros de Salvador, e a 900 metros de altitude. Depois do sol se por, uma neblina paira no horizonte e a temperatura marca até 14 ºC. Foi em uma dessas noites de outubro, há 80 anos, que desembarcaram os alemães. Os cinco mil habitantes do município à época despertaram com a presença de estranhos, que chegavam como inimigos.

Um ano antes, o presidente Getúlio Vargas aderia aos países Aliados na Segunda Guerra Mundial - Reino Unido, França, União Soviética e Estados Unidos. A decisão encerrou a diplomacia local com os países do Eixo - Alemanha, Itália e Japão. Pressionado, o governo criou campos de concentração para nativos dos países rivais.

Escultura de santa feita por João Bunge
Escultura de santa feita por João Bunge Crédito: Acervo/Maracas cidade das flores

Os campos de concentração são espaços de confinamento para prisioneiras de guerra e, na Bahia, poderiam existir em cinco cidades: Andaraí, Caetité, Mucugê, Seabra e Maracás. O destino dos alemães, no entanto, foi esse último município. Partindo de Salvador, chegava-se até lá depois de um trecho de navio, outro de trem e, por último, de caminhão.

O isolamento deve ter contado pontos para a preferência do Estado pela cidade, somado à experiência anterior de italianos na região, onde comercializavam borracha. O que aconteceu lá, e foi chamado pelo governo de campo de concentração, não se assemelha em nada aos campos de extermínio da Alemanha nazista, mas havia restrições a serem cumpridas.

Os alemães não podiam expressar opiniões, falar sobre seu país ou guerra, beber ou ouvir rádio. Não podiam passar das 20h fora de casa. De lá, também só saíam com autorização do major Oscar Sá, responsável por fiscalizar os prisioneiros. 

As privações não impediram que tivessem relações que sobrevivem, com obstáculos, materialmente e nas lembranças de descendentes, viúvas e amigos.

Maracás é exemplo mais recente de confinamento de 'prisioneiros'

Antes da Segunda Guerra começar, a Bahia já tinha confinado prisioneiros de guerra durante as batalhas pela independência da Bahia, em 1822, e a Guerra de Canudos, entre 1896 e 1897. Em Maracás, no entanto, a experiência seria de mais liberdade, como logo a família alemã Bunge percebeu.

Quando chegou na cidade, Erika Bunge, 82 anos, tinha apenas dois. Vinha de Salvador com a mãe e os três irmãos - todos baianos - ao encontro de Joahnns Bunge, que assina a escultura deixada no que virou o quintal de um sindicato.

João Bunge, escultor transferido para Maracás
João Bunge, escultor transferido para Maracás Crédito: Acervo pessoal/Érika Bunge

João Bunge, nome abrasileirado do escultor, teve o ateliê destruído no bairro do Garcia, em Salvador, por militares, no início de 1943. Com receio de novas represálias, apresentou-se à Vila Militar do Dendezeiros para que fosse levado a Maracás. O auto-exílio de Bunge ilustra as complexidades do que aconteceu na Bahia.

A aposentada Erika, filha do alemão, rememora essa época. O que diz hoje é uma miscelânea do que viveu, ouviu e leu nas cartas escritas pelo pai, guardadas por ela em casa, em Jequié, a 91 quilômetros de Maracás. Na infância, Erika lembra de enfrentar a resistência dos colegas, que rapidamente cedeu para a amizade.

"Meu pai era apaixonado por Maracás, nós também. Primeiro porque ele amava natureza. Nunca vi meu pai falar que não gostava de alguma coisa. Para minha mãe, foi mais difícil, estava muito acostumada a uma grande cidade."

Erika Bunge
aposentada

Ela e a família moravam na zona urbana. Outra parte dos alemães foi alojada em uma zona rural chamada Boca do Mato. Aos sábados, todos se reuníam lá para conversar em seus idiomas nativos e comer pratos típicos, como pão preto e salada de batatinha.

Alemães também foram acomodados na zona rural
Alemães também foram acomodados na zona rural Crédito: Dissertação/Marina Helena Chaves

Esses hábitos alimentares eram desconhecidos pelos nativos, assim como os plantios de tomate e repolho. Por influência germânica, essas culturas se tornariam uma das bases econômicas locais, hoje somadas à pecuária e a exploração de vanádio.

A casa onde os encontros dos estrangeiros ocorriam caiu em 2019. Segundo relatos dessa época, não resistiu a um temporal. Era nessa residência que entusiastas da memória local queriam ver um museu - o que nunca aconteceu.

Um passeio por Maracás revela outras marcas deixadas pelos alemães. A escola municipal e a igreja católica foram construídas com ajuda de dois deles, engenheiros. A balaustrada que contorna a Praça Ruy Barbosa também foi obra dos estrangeiros.

Igreja de Maracás, uma das obras supervisionadas por alemães
Igreja de Maracás, uma das obras supervisionadas por alemães Crédito: Maracás Cidade das Flores

Isso mostra que, enquanto viveram em Maracás, os prisioneiros podiam trabalhar com o que bem entendessem. Nas horas das refeições, iam todos buscar alimentos em uma cozinha comunitária, no centro. A residência onde ficava esse cômodo é uma casa particular, onde restaram, do passado, armários e cantoneiras de madeira.

Quem foi para Maracás? Falar alemão já era 'suspeito'

Quando a Segunda Guerra eclodiu, 542 alemães viviam na Bahia. Aqueles enviados para Maracás eram considerados "suspeitos" pelo governo. Não há registros localizados por pesquisadores de japoneses ou alemães enviados para confinamento na Bahia.

Entre eles, existiam, sim, conectados com o cenário exterior e adeptos do nazismo fascismo. Mas no adjetivo "suspeito" cabiam subjetividades.

Foi o que descobriu a historiadora Marina Helena Chaves Silva, professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia: 

"Todos passaram a ser suspeitos. Até baianos, filhos ou esposas desses alemães, chegaram a Maracás como se fossem alemães. Falar em alemão já era considerado suspeito, beber cerveja, um hábito deles, também."

Marina Helena
historiadora

Helena é autora da principal obra sobre os alemães em Maracás, uma dissertação de mestrado em História Social focada nas relações entre estrangeiros e nativos da cidade, onde moram 21 mil pessoas, calcula o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

A pesquisadora morou em Maracás entre o final dos anos 70 e 2017. Foi no início da estadia que descobriu a atuação dos alemães por lá, em vestígios como os sobrenomes cheios de consoante de alunos e a autoria de obras. Sentiu estar diante de uma grande história, e foi investigá-la nos anos 90, a partir da memória dos mais velhos. 

"Vi que as lembranças eram sempre de aproximação entre eles: visão de que foi bom os alemães estarem ali, alguns até choravam ao lembrar deles. Quando eu perguntava para eles: por que eles vieram? Alguns achavam que eram criminosos. Isso está na memória dos moradores. Eles lembram disso, mas muitos não lembram nada da guerra."

Marina Helena Chaves
historiadora

A população de Maracás, afinal, tinha vago conhecimento sobre o conflito internacional. Só existia uma rádio na cidade, único elo entre aquele pedaço de sertão e o mundo – além dos novos vizinhos.

“Em todas as buscas que fiz em arquivos, não temos a força de toda a ideologia nazista. No início houve um estranhamento dos locais com eles, mas isso foi passando”, explica Marina.

Os detalhes do confinamento em Maracás podem ajudar a entender outras nuances da participação da Bahia na Segunda Guerra, avalia Ricardo Carvalho, historiador e autor de "5 segundos", peça sobre o conflito.

"Ainda muitas revelações virão à tona. Esse tema ficou por anos encoberto por conta do efeito que a guerra trouxe, principalmente depois que o holocausto na Alemanha nazista se tornou muito mais explícito. Há ainda um grande problema: a ausência de documentação."

Ricardo Carvalho
historiador e autor de "5 segundos", peça sobre a Segunda Guerra na Bahia.

Descobertas e desconhecimentos: olhando para o passado

Com o tempo, alemães estreitaram relações de amizade com maracaenses, criaram negócios, constituíram família. Angélica Stelter, 82, é viúva de Helmut Stelter, exilado em Maracás com o irmão Herbert. Os dois fugiram, nos anos 1920, da Alemanha, destruída pela Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Primeiro, moraram em Salvador, mas, em 1935, migraram para Itabuna, onde foram presos sete anos depois. Na casa deles, como mostrou a pesquisa de Marina, foram apreendidos livros sobre nazismo, e boletins, panfletos e revistas em língua alemã.

"O meu marido, quando começou a guerra, era nazista. Não nego, ele e o irmão. Muitos alemães seguiram o nazismo, iludidos, mas depois, quando viram o que era, mudaram de rota. Ele [Helmut] falava disso, criticava o que fizeram com os judeus. Ele não apoiava. Me desfiz de tudo da Alemanha que ele tinha, achava que não dava bom agouro."

Angélica Stelter
aposentada

A aposentada evitava falar desse passado, por medo de que associassem a família aos horrores dos campos de extermínio. Mas perdeu o receio. "Eles foram mostrando que não tinham nada a ver com a guerra. Helmut era maravilhoso. Não há uma pequena mancha que eu poderia atribuir a ele", explica a viúva do alemão que adorava o cantor Agnaldo Timóteo e está enterrado no cemitério municipal.

Alemães na Bahia nos anos 40
Alemães na Bahia nos anos 40 Crédito: Marina Helena Chaves

O estigma sobre alemães, que fazia Angélica calar, é uma das dificuldades dos pesquisadores que se dedicam aos campos de concentração brasileiros.

"É uma história cheia de tabus. A própria academia diverge, há pessoas que afirmam que tem que se chamar de 'campo de internamento', como se o campo de concentração tivesse existido só na Europa. Claro, os campos nazistas de extermínio são levados ao extremo. Mas houve campos de concentração em diversos momentos da história. "

Priscila Perazzo
historiadora e professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Um dos exemplos aconteceu no Ceará. Em 1915 e 1932, pessoas que fugiam dos efeitos da seca, foram acomodadas em campos de concentração criados pelo governo estadual. O objetivo era evitar que chegassem até Fortaleza, aos olhos da elite cearense.

Campo de concentração no Ceará
Campo de concentração no Ceará Crédito: Kênia Sousa Rios/Acervo da professora.

Pouco mais de uma década depois, o governo brasileiro criou ao menos 11 campos de concentração em sete estados brasileiros para os prisioneiros da Segunda Guerra. A historiadora Priscila Perazzo estudou essas colônias, no doutorado em história social pela Universidade de São Paulo, a partir de documentos até então lacrados pelo governo.

O único campo no Nordeste que constava nessa papelada estava em Pernambuco. A Bahia não constava nessa lista.

"Talvez o Estado não deu muita atenção a essas famílias alemãs na Bahia, porque eram comunidades que não ameaçavam tanto. Mas são possibilidades, hipóteses", conjectura Perazzo.

Os campos de concentração brasileiros foram mantidos pelo Ministério da Justiça. Questionado, o ministério recomendou a consulta ao Arquivo Nacional. No acervo online do Arquivo, a reportagem não localizou informações sobre o campo em Maracás.

O fim da guerra: quem ficou e quem foi embora?  

A notícia do fim da Segunda Guerra, no dia 5 de maio de 1945, foi anunciada imediatamente em Maracás pelo major Oscar Sá. A população comemorou com fogos, e os alemães podiam se considerar livres. "Foi um momento de muita euforia", recorda Angélica Stelter, nascida em Maracás e à época com 9 anos. 

Os estrangeiros arrumaram as malas para voltar a Salvador. Só três famílias ficaram: Grave, Bunge e Stelter. Lá, criaram uma charcutaria, produziram esculturas e trabalharam em obras, respectivamente.

Quem foi embora enfrentou dificuldades de reinserção no mercado, como a reconstrução total do patrimônio, narra Marina Helena na sua dissertação de mestrado.

A Bahia conhecia a presença germânica há mais de um século. Apesar de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, entrar para a historiografia como marco da imigração alemã no Brasil, a primeira colônia alemã do país foi fundada no sul da Bahia, em 1818.

Depois dela, seis colônias alemãs existiram no estado. Todas, no entanto, foram frustradas, por fatores como as dificuldades de adaptação dos colonos ao clima tropical.

Fora das colônias, os alemães se espalharam pelo mapa. Os principais destinos foram as regiões sudoeste, Chapada Diamantina, sul, Recôncavo Baiano e Salvador. Ocupavam-se de diferentes atividades, da mineração à agricultura.

Na Chapada Diamantina, por exemplo, o alemão Franz Wagner deu nome a uma cidade - Wagner - por ter ensinados técnicas agrícolas aos nativos, que padeciam da seca no final da década de 1880.

Em Maracás, as contribuições germânicas não estão em homenagens. Mas ”são uma memória viva entre os mais velhos", diz a Flávio Guimarães, professor da rede estadual e mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia com uma pesquisa sobre a cidade. "Já entre os mais jovens, muita gente não sabe", contrapõe.

Entre 2009 e 2012, Flávio foi vereador na cidade, e sugeriu a criação de um centro de memória para acomodar o passado local. O projeto, que já havia sido aconselhado por outros moradores, não foi para frente. A reportagem tentou contato com a Prefeitura de Maracás, mas não obteve retorno.

"Ninguém fala sobre alguns assuntos, por exemplo, de que modo houve articulação de ideias nazistas aqui. Por vergonha principalmente, esse é um tema restrito. Até porque a população em geral não conhece. Com esse movimento político acontecendo, em que termos como nazismo e fascismo voltam ao debate, isso surge com mais força."

Flávio Guimarães
professor

Em duas décadas como professor de geografia, Flávio fez da presença alemã na cidade assunto das suas aulas. Os alunos se surpreendem: "É uma novidade entre eles: 'poxa, Maracás recepcionou presos políticos? Onde consta isso?' E aí eu conto”. Para que uma memória não morra, é preciso que alguém queira lembrar.