Back in Bahia: como explicar a sensação de pertencer a uma cidade que não é a sua

Muitos se apaixonam e criam pertencimento ao pisar na Bahia, sobretudo em Salvador

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  • Nilson Marinho

Publicado em 27 de maio de 2024 às 04:52

Podemos explicar a sensação de estar em uma cidade, olhar ao redor, reparar as pessoas, suas roupas, fé, traços, trejeitos, a maneira como festejam e como também choram e pensar: sou um deles, mesmo que se tenha nascido longe dali? Também há explicação para o desejo de fazer planos de mudança para viver em um lugar onde nunca se esteve antes ou que se pisa pela primeira vez?

Talvez não seja possível esclarecer nada disso, como dizem aqueles tomados por esses sentimentos, mas talvez tenha, como afirmam os estudiosos das Ciências Humanas. O ponto em questão é que algumas pessoas que chegam à Bahia, mas especialmente a Salvador, sentem-se também filhos da terra, como se estivessem em uma viagem de volta para um lugar que um dia lhes pertenceu.

A professora de ioga e artes circenses Julia Ramona, 35 anos, nasceu em Cartagena das Índias, uma cidade portuária da costa caribenha da Colômbia, capital do departamento de Bolívar. Aos 10 anos, seus pais se mudaram para a cidade de São Paulo após um desarranjo familiar os levar à falência.

Na maior cidade da América Latina, a adaptação não foi fácil. Novos sabores, novas pessoas, uma nova língua e um clima completamente diferente de sua cidade natal, onde os dias são quase sempre de céu azul e de temperaturas mínimas que não ultrapassam os 23ºC, mesmo no inverno.

Na escola, já na adolescência, a colombiana conheceu a literatura do escritor baiano Jorge Amado. A escrita dele foi capaz de acender as memórias dos seus dias ensolarados pelas ruas de casaril colorido do bairro San Diego, zona turística da cidade em que nasceu.

“Foi incrível como as primeiras linhas de suas obras me remeteram de forma imediata à Cartagena e suas ruas, tão parecidas com Salvador, caóticas, por vezes sujas, mas vibrantes, coloridas, musicais, ocupadas por pessoas felizes e batalhadoras”, contou a professora de ioga.

Ramona, ainda desabrochando para a vida adulta, lançou para o universo: “se não posso voltar a Cartagena, que eu viva na distante e, ao mesmo tempo próxima, Salvador.

“Aos 25 anos, mesmo sem conhecer a cidade, cheguei qui. Eu sabia que não seria apenas uma viagem de férias, como comuniquei a minha família, eu tinha a certeza de que ficaria de vez. A primeira vez que vi uma baiana de acarajé em traje pensei: são palenqueras de Cartagena, estou em casa”, completou a colombiana.

"Esse sentimento podemos chamar de pertencimento. É quando olhamos ao nosso redor e nos identificamos com um determinado grupo ou comunidade. Vemos ali alguma ou várias coisas se aproxima dos nossos valores, costumes e tradições. Automaticamente, nos conectamos e passamos a nos ver como parte integrante", explica a socióloga e doutora em Sociedade e Cultura, Marina Neruda.

Em janeiro de 2016, o influenciador digital Leonardo Quintino se preparava para conhecer Salvador. Além de ser a primeira vez que estaria na cidade, era também a primeira vez que entraria em um avião. Devido a contratempos, perdeu o voo e a viagem foi remanejada para junho, momento em que a capital baiana festejava a chegada do São João.

O influenciador Leonardo Quintino é do Rio e se apaixonou por Salvador Crédito: Instagram

Em sua primeira visita à capital baiana, ficou hospedado no bairro de São Cristóvão, local mais afastado dos cartões postais da cidade, exceto daqueles que ficam situados em Itapuã. Foi lá, inclusive, olhando para a orla do bairro que ele decidiu deixar o Rio.

“Além de me surpreender com os eventos que estavam acontecendo na cidade, o fácil acesso às praias me chamou atenção. Eu vim do Rio, onde a praia é um lugar mais distante da massa, tem pouquíssimas comunidades próximo às praias, mas a massa da Zona Norte do Rio, por exemplo, precisa pegar ônibus, metrô e trem para chegar, é bastante complicado”, comenta Quintino.

“Aqui, eu via essa diferença, todo mundo estava junto na praia, todas as classes sociais. As comidas que têm na praia, o queijo coalho com orégano e melaço, tudo isso me encantou, sem contar as festas. Foi bem interessante olhar tudo isso e pensar: eu viveria neste lugar”, completa o influenciador.

Para Alberto Dantas, geógrafo e mestre em Educação, Culturas e Identidades, não é necessário nascer em determinada comunidade para também se sentir parte dela. É possível, sim, ter uma conexão com lugares e pessoas mesmo sem que nunca as conheçam, diz.

“Salvador, por exemplo, é uma cidade negra, a cultura afro está em toda a parte, é mais que compreensível que um negro estadunidense ou de outro estado do Brasil, chegue lá, olhe em volta, e entenda os símbolos da comunidade, suas dores e alegrias, mesmo sem trocar uma única palavra com os indivíduos daquele local”, comenta Dantas.

O carioca Will Ribeiro veio a Salvador pela primeira vez a trabalho em 2017. Ele atuava como advogado na cidade de São Paulo e se voluntariou a ir até à capital baiana substituir um colega em uma demanda na cidade. O compromissa era em uma sexta-feira, mas a estadia foi prolonga para o fim de semana.

Will Ribeiro sonha em comprar uma casa na cidade
Will Ribeiro sonha em comprar uma casa na cidade Crédito: Instagram

“Cheguei com o coração aberto para aproveitar ao máximo. Fiz todo o pacote turista: tours e visitas aos pontos turísticos. Foi o suficiente para me sentir muito familiar e parte de Salvador. Foi um presente que eu precisava naquele momento, pois estava mergulhando na minha negritude e história. Salvador proporciona isso para qualquer pessoa preta interessada em conhecer suas raízes e origens”, conta o jovem.

Mesmo com a breve passagem, a conexão com a cidade foi tão grande que, naquele ano, Will retornou três vezes. Há dois, ele voltou mais uma vez, mas, agora, com familiares, incluindo a avó, que fez sua primeira viagem de avião.

“Quando conto a história de Salvador para meus amigos, seja no Rio, na América Latina ou na Europa, falo do que aprendi aí. Para mim, Salvador representa comunidade. É uma cidade que me dá direção e um senso de pertencimento. Não é só uma questão de turismo, mas de me perceber como parte da cidade e crescer a partir dessas visitas, conectando-me com quem eu sou”, completa.