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Raquel Brito
Publicado em 2 de abril de 2024 às 06:00
Estimular coordenação motora, interação social e responsabilidade. Foi com esses objetivos que nasceu o Jiu Jitea, centro especializado em terapia com jiu-jitsu para crianças autistas. O espaço, aberto em janeiro, atende crianças entre três e 15 anos. >
A fundação foi uma iniciativa da fisioterapeuta Alycia Reis, 23 anos, inspirada pelas próprias experiências. A história de Alycia com a realidade de pessoas neurodivergentes e com o esporte iniciou cedo: ela começou a praticar jiu-jitsu para conter as crises do irmão mais velho sem machucá-lo. Quando conquistou a faixa roxa, trabalhou por dois anos como instrutora de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). >
O momento decisivo para a fundação do Jiu Jitea, entretanto, foi o diagnóstico de autismo do filho de Alycia, Arthur, de 3 anos. “Salvador carece de iniciativas multifacetadas para tratamento de crianças e adolescentes autistas. Como somos pais de uma criança [com TEA], isso nos deu um inconformismo sobre a realidade. Iniciativas que levam crianças autistas para mais perto dos esportes ajudam a aumentar a conscientização e a aceitação da comunidade em relação ao autismo e promover uma cultura de inclusão e respeito às diferenças”, pondera Alycia.>
Atualmente, a Jiu Jitea tem dois instrutores para dez alunos, e trabalha apenas com aulas individuais. Para se inscrever no programa, as crianças passam por uma avaliação em duas partes. A primeira é um acompanhamento minucioso com os pais, e a segunda é uma avaliação psicomotora completa da criança. Na segunda etapa, são avaliados aspectos da como força, cognição, concentração e disciplina. Só então é construído, sob medida, o planejamento de aulas. >
A instrutora utiliza um método próprio, que leva o nome do filho e tem o jiu-jitsu e a fisioterapia como pontos principais para a intervenção multidisciplinar. Para Alycia, o esporte tem um forte peso nesse processo, uma vez que muitas crianças autistas têm déficits psicomotores. >
“As clínicas acabam focando muito nas funções psicológicas e colocando as motoras em segundo plano, não têm um acompanhamento fisioterapêutico amplo. A maioria das crianças autistas anda na ponta dos pés e isso causa consequências para o resto da vida se não for tratado, como encurtamento de musculatura. O jiu-jitsu é uma forma de estimular esse tratamento”, explica.>
Além do estímulo ao desenvolvimento motor, a prática da rotina esportiva é positiva para as crianças no sentido comportamental. “Normalmente, junto com o autismo também existem outras especificidades como o déficit de atenção e o Transtorno Opositor Desafiador [TOD]. A disciplina e o respeito do jiu-jitsu ajudam muito essas crianças na parte da concentração”, diz Alycia. >
Diretora da Clínica Navegar e terapeuta ocupacional com Certificação Internacional em Integração Sensorial, Adriana Balaguer afirma que as atividades físicas têm um papel fundamental no desenvolvimento das crianças com transtornos do espectro autista. Ela explica que esse esporte enfatiza os três sistemas de base sensorial: o sistema proprioceptivo, responsável pelo reconhecimento da localização espacial do corpo; o sistema vestibular, que é ativado através do movimento e velocidade; e o sistema tátil.>
“Cerca de 99% das pessoas com autismo são pessoas que têm algum tipo de disfunção de integração sensorial. Isso quer dizer que essas pessoas podem ter dificuldade com a recepção, modulação e discriminação dos estímulos sensoriais recebidos pelo meio. O jiu-jitsu vai favorecer muito a percepção proprioceptiva do corpo, porque é um esporte que oferece o uso de força e compressão das articulações”, diz. >
Reforçando a fala de Alycia Reis, a especialista ressalta também o aspecto social, uma vez que “é preciso outra pessoa para praticar”: “Então, também tem que aprender a lidar com os próprios limites e com os do outro”.>
Em Ribeira do Pombal, a 300 km de Salvador, a Academia Espaço da Criança promove a inclusão e o desenvolvimento de crianças atípicas por meio de atividades físicas, como judô, treinamento funcional, escalada esportiva e psicomotricidade. Idealizado pela profissional de educação física e judoca Fábia Karina, o projeto surgiu em janeiro de 2022, e hoje atende 25 crianças com autismo e outras especificidades. >
"Durante a Pandemia, fiz diversos cursos voltados para crianças atípicas. Um desses cursos foi Judô e Autismo, ministrado por um professor do Rio de Janeiro que tem um Espaço onde ele atende exclusivamente crianças e adolescentes autistas. A forma com que o professor lidava com o público específico me encantou e abriu minha mente para empreender também para esse público. Busquei uma pós-graduação na área e hoje sou especialista em Autismo, o que fez com que melhorasse meus conhecimentos e ampliasse outras possibilidades", conta a professora. >
A iniciativa foi uma das pioneiras em inclusão pelo esporte na cidade de 54 mil habitantes. Para Fábia, é essencial que esses espaços existam. "É muito importante ter um local específico para que as crianças se sintam acolhidas, tendo em vista que há um aumento significativo de crianças e adolescentes com alguma condição neurológica. Elas precisam ser incluídas em diversos ambientes, mesmo em cidades do interior, porque toda a sociedade, independente do lugar, precisa se preparar para elas". >
*Com orientação da subeditora Fernanda Varela.>