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Fernanda Santana
Publicado em 20 de julho de 2024 às 05:00
Um terreno de 2 mil m², situado entre morros da Chapada Diamantina, parecia o ideal para os planos de um baiano acostumado à cidade. Lá, ele pretendia construir uma casa para aluguel e, no futuro, desfrutar a aposentadoria. Só que o lote, comprado por R$ 130 mil, nunca foi entregue. >
A compra desse pedaço de terra no Vale do Capão, distrito de Palmeiras, aconteceu há três anos, depois de uma temporada no local. Desde então, no entanto, ele não recebeu terreno, nem a devolução do dinheiro. Pelo menos sete pessoas afirmam que também foram lesadas.>
Todas as áreas, localizadas em diferentes partes do Capão, foram vendidas nos últimos quatro anos, segundo eles, por Maria Betânia Soares, dona da Betânia Imóveis. Nativa do distrito, ela é a corretora mais famosa da região e reivindica o título de primeira profissional do ramo na Chapada. O montante médio pago a ela foi de R$ 480 mil.>
A consultora responde por quatro processos judiciais nas varas cível e penal, e é investigada pelo Conselho Regional de Corretores de Imóveis (Creci), que fiscaliza o exercício da profissão, após ser denunciada três vezes por “transgressão das normas éticas”. As possíveis punições são advertência, suspensão, multa e até o cancelamento do registro profissional.>
Nenhum dos entrevistados quis ser identificado na reportagem, mas eles têm uma versão semelhante sobre o caso.>
A corretora, de acordo com eles, apresentou um contrato de compra e venda, recebeu o dinheiro em uma conta bancária e deu um prazo para entregar o lote. Quando chegou a data, começaram as “desculpas”, na versão deles. >
Todos disseram que, por causa das restrições da pandemia da covid-19 e da boa fama da corretora, que iniciou empreendimentos bem-sucedidos e tinha firmado negócios com conhecidos, foram “mais permissivos” com os atrasos.>
“Primeiro teve um problema no dia que seria colocada a cerca ao redor do terreno. Depois, a cartógrafa adoeceu. Aí depois o material estava quebrado. Depois, ela adoeceu”, narra um dos investidores. “Aí, nunca recebemos. Seria um investimento de uma vida”, lamenta. >
O baiano diz que o terreno que ele comprou, mas não recebeu, foi anunciado pela corretora no Instagram mesmo depois do negócio fechado entre eles. >
Nessa rede social, Betânia tem quatro mil seguidores, para os quais divulga ofertas de imóveis, selfies e vídeos motivacionais. Em uma postagem, ela se apresenta como filha de garimpeiro, revolucionária do mercado local e realizadora de “sonhos de famílias”. Alguns dos seus clientes são famosos. >
Em março deste ano, ela publicou uma foto com um ator global. A legenda sobre a foto era: “Mais um cliente satisfeito”.>
A defesa da corretora, representada pelo escritório Bizerra Advocacia Especializada, enviou nota sobre o caso, em que reforça a idoneidade da cliente que, segundo os advogados Thalis Bezerra e Jefferson Souza, foi prejudicada por um “terceiro”, que não teve o nome citado. A reportagem não identificou quem seria essa pessoa. >
O pronunciamento será reproduzido ao longo desta reportagem e na íntegra, ao final. >
O Vale do Capão vive um boom imobiliário e populacional desde o início da pandemia da covid-19, em 2020. Vindos de várias partes do Brasil, novos moradores ou investidores enxergaram no Capão uma oportunidade financeira ou a representação do estilo de vida que buscavam: longe do frenesi das metrópoles, mais próximo da natureza. >
A antiga vila de nativos, descoberta pelos alternativos nos anos 1980, no entanto, vive uma dicotomia. O distrito está enredado em conflitos relacionados à ocupação e invasão de áreas de proteção ambiental, e divergências quanto ao futuro, como se a estrada que leva ao distrito deve permanecer de terra ou ser asfaltada. >
Não há uma estimativa oficial da quantidade de moradores do Capão, mas o número de habitantes de Palmeiras, 10,3 mil, serve como parâmetro. Desde 2000, a população teve o maior crescimento da história: 23%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). >
Essa expansão alavancou o mercado imobiliário. Perto do Vale, o metro quadrado é vendido por R$ 150. Mais distante, o valor cai para R$ 50. Casas prontas são vendidas até por milhões, como no Litoral Norte da Bahia, que também vive um crescimento inédito.>
Há 19 corretores habilitados pelo Creci para trabalhar em três das cidades mais visitadas por turistas da Chapada — Palmeiras, Mucugê e Lençóis. No Capão, Betânia, uma delas, se destacou. A nativa chegou a ter uma loja na vila do distrito, que agora está fechada. No ano passado, ela alugou uma sala no Shopping Paseo, no bairro do Itaigara, em Salvador, para inaugurar um estande de vendas. Depois, desistiu, disse uma fonte do espaço. >
As pessoas que afirmam ter pagado à nativa por terrenos que não receberam desconfiam que a profissional vendeu áreas loteadas sem a permissão dos proprietários, que queriam a venda integral, segundo elas. >
A suspeita foi formalizada em um boletim de ocorrência registrado contra a corretora em novembro de 2022, na Delegacia de Palmeiras, por um deles. O andamento da denúncia não foi informado.>
Outro comprador, a essa altura, percebeu que não receberia o terreno pelo qual pagou R$ 89 mil. “Descobrimos que esse terreno nunca foi dela”, conta. Segundo ele, a corretora ofereceu outro terreno no lugar. “Porém esse igualmente não era dela”, acrescenta.>
Em abril deste ano, ele firmou uma rescisão do contrato de compra com Betânia, para que ela devolvesse o dinheiro. A primeira parcela do valor em abril e o restante até agosto. “Mas ela não pagou nem a entrada”, diz o investidor. >
“Conversei muito com ela. Inclusive fui compreensível com as desculpas que ela dava para não pagar e não entregar o terreno”, conta. “Era cada vez uma desculpa diferente. Chorava no telefone, dizia que estava com dificuldades”.>
A história dele foi parecida com a de um investidor que comprou um terreno em 2021.>
“Ela [Betânia] disse que tinha adquirido o imóvel de outra pessoa. A gente pagou para ela uns R$ 180 mil. Queríamos investir lá, porque o Capão tem uma possibilidade boa de futuro. A gente foi lá formalizar o negócio. Mas ela não tinha comprado [esse lote] que estava vendendo. Falamos com ela, ela disse que se atrapalhou, e que ia resolver, mas não resolveu”. >
Segundo ele, os dois descobriram que o terreno não seria entregue quando visitaram o Capão novamente. Ao chegarem à área que pensavam ter comprado, encontraram uma placa de “Vende-se”. “Mas a placa era do proprietário, e a corretora dele era outra”, conta. >
Segundo a nota enviada pela defesa de Betânia, representada pelos advogados Thalis Bizerra e Jefferson Souza, o imbróglio começou quando, em 2021, “foi criado um grupo para aquisição e posterior loteamento de terrenos”. À frente do negócio, confirma a nota, estavam “Betânia, sem participação da sua imobiliária e um terceiro não mencionado por questões éticas”. >
“Após efetuada algumas vendas para pessoas próximas (que inclusive já foram clientes da assistida) e os respectivos valores terem sido utilizados para custeio da infraestrutura do local”, prossegue o documento, “o terceiro desistiu do negócio, deixando a Sra. Maria Betânia com prejuízos de ordem moral e financeiros, perante aproximadamente seis pessoas”. >
A nota insiste que, “independente dos danos sofridos, a Sra. Maria Betânia procurou todos os credores para efetuar os respectivos distratos comerciais e repassar-lhes os valores anteriormente pagos com correção monetária”. Mas afirma que o compromisso não foi honrado, ”tendo em vista os altos índices de multas e juros aplicados por representantes dos credores e estando a hoje representada, desassistida de assessoria jurídica". >
Por fim, os advogados defendem que foi desenvolvido um plano de “gerenciamento de crise financeira e entrou-se em contato com todos os credores para oferecer-lhes propostas de negociação”. “Em relação às demandas judiciais, estas estão sendo acompanhadas de perto e terão a mesma tratativa voltada à conciliação”, conclui. >
Os investidores compraram o terreno sem a escritura, documento em que constam informações como a metragem total do lote, mas não estranham a modalidade, porque "a maioria dos lotes no Capão são vendidos assim", afirma o comprador de um lote. >
“O que se fez é, após um tempo, entrar na justiça pra regularizar a escritura”, conta. >
Uma estatística dimensiona parte do problema: só na comarca de Iraquara, que atende três municípios, tramitam 14 ações judiciais relacionadas a usucapião, quando o direito de propriedade acontece em função do tempo de ocupação. Desses processos, metade se refere a terras no Capão. >
Os terrenos vendidos lá são fatias do que eram fazendas, pequenas propriedades de agricultores e garimpeiros, e áreas ocupadas por posseiros e grileiros. A região passou por diferentes ciclos econômicos, tendo a extração de mineral e o café destaque até os anos 1950, narra o antropólogo Yann Pellissier, que estudou o Capão no mestrado na Ufba. >
A decadência dessas culturas levou ao êxodo rural, até que uma descoberta coloca os holofotes sobre o distrito. A cachoeira da Fumaça, apresentada em 1952 como atração turística, projetou o local pelo país. Um ano depois, a prefeitura de Palmeiras criou o distrito de Caeté-Açú, mas o nome popular permaneceu Vale do Capão, pela característica geográfica.>
Nas décadas seguintes, o Capão só cresceu, com um rumo econômico orientado pelo “turismo e o neo-ruralismo”, segundo o antropólogo da Ufba. Os novos moradores começaram a chegar, a partir da compra de lotes ou estadia em comunidades hippies. >
Uma das pedras no caminho da regularização imobiliária no Capão é que passou a acontecer a venda de áreas que não foram desmembradas como lotes. O desmembramento é um processo feito em cartório a um custo que varia a depender do tamanho e da localização do terreno. >
Além disso, áreas rurais não podem ser loteadas, para evitar a urbanização de zonas de agricultura e, também, a destruição de um modo de vida. Cabe às cidades definir, em seus planos diretores municipais, quais são e onde ficam as zonas urbanas, rurais e as de expansão do município.>
Hoje, o Ministério Público da Bahia (MP) apura indícios de existência de 26 loteamentos e condomínios legais em quatro municípios da Chapada Diamantina — Iraquara, Ibicoara, Lençóis e Mucugê. O órgão pedirá um levantamento para Palmeiras, onde fica o Capão.>
Embora a confusão territorial seja tratada como mero resultado do histórico da ocupação, quem recebeu o valor da venda de um terreno não está isento da responsabilidade, caso não entregue.>
Antes de efetuar a compra, é possível solicitar uma certidão que declare se o imóvel ou lote pode existir e ser transmitido. Isso pode ser feito pelo número da matrícula do bem, em um cartório, por R$ 14. >
“É importante que a documentação do imóvel esteja completa. Sem escritura desse bem, a pessoa não tem a propriedade”, explica Moisés Gomes, advogado especialista em direito imobiliário e corretor.>
“O comprador ainda terá que registrar essa escritura. Existe um ditado: ‘quem não registra não é dono’", ressalta.>
A falta desse documento pode trazer problemas, reforça o advogado. Ele dá o exemplo — apropriado para o Capão — da construção de uma estrada: o Estado vai indenizar se o terreno ou imóvel tiver escritura; se não, pode haver problemas. >
NOTA DEFESA >