Cadastre-se e receba grátis as principais notícias do Correio.
Esther Morais
Publicado em 22 de março de 2024 às 18:00
Era o sonho de Arthur Cordeiro, de 19 anos, estudar gastronomia na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Ele se candidatou, fez o processo seletivo e foi aprovado, mas o sonho foi interrompido quando sua autodeclaração para cotas raciais foi negada. O estudante recorreu duas vezes do resultado, mas ambas foram indeferidas. >
"É uma profunda mistura de tristeza e indignação. Sou um jovem de pele parda, conforme a escala de tons de pele de Fitzpatrick, tenho cabelo encaracolado, nariz de base alargada e ponta arredondada. Encaro este processo como uma negação da minha identidade e existência", afirma. >
Em 28 de fevereiro, no dia da avaliação da identificação racial, Arthur se deslocou de Riachão do Jacuípe, onde mora, para Salvador. Foram 192 km de distância apenas para passar pela avaliação presencial. O jovem conta que ficou em frente a uma câmera e a banca analisou se concordava com a declaração feita no momento da inscrição. Ele também tirou fotos de frente e lado, mas diz que não recebeu muitos comentários, além das instruções para o procedimento.>
A reportagem entrou em contato com a Ufba para ter uma justificativa sobre o indeferimento, mas a universidade apenas informou que não vai comentar o caso e que a análise dos candidatos é feita pelas características fenotípicas. Em geral, exemplos de fenótipo são o formato dos olhos, a tonalidade da pele, cor e textura do cabelo.>
Conforme o último edital de convocação publicado pela Superintendência de Administração Acadêmica (Supac), consta que "serão consideradas as características fenotípicas do/a candidato/a ao tempo da análise do procedimento de heteroidentificação". >
Também afirma-se que a "alegação de ancestralidade, mazelas sociais ou quaisquer outros elementos sociais e históricos, não é cabível no procedimento de Heteroidentificação Presencial Complementar à Autodeclaração como Pessoa Negra (Preta ou Parda), uma vez que a comissão avaliadora pautará a sua análise por critérios exclusivamente fenotípicos". O documento, contudo, também não detalha quais seriam tais características. >
O Coordenador Geral Estadual do Movimento Negro Unificado da Bahia (MNU-BA), Paulo Reis, explica que o procedimento funciona da seguinte forma: a banca recebe o candidato e este se apresenta e se declara enquanto pessoa negra. Ele é avaliado após sair. A banca se reúne e debate buscando por preferência pelo consenso. Na ausência de consenso, o debate retoma e ocorre a defesa de cada membro da banca pela sua posição. A posição pela maioria é a decisão da banca.>
A reportagem consultou pessoas ligadas ao movimento negro, que analisaram algumas imagens do rapaz e avaliaram que ele poderia ser contemplado pelo direito à vaga. A indicação dada ao estudante foi recorrer ao comitê. >
Depois de receber o resultado, Arthur criticou a falta de inclusão para pardos. "Ao ser confrontado com a notícia de que minha autodeclaração foi rejeitada, eu me remeto às palavras da especialista Alessandra Devulsky, que acertadamente descreveu a experiência de ser pardo no Brasil como 'ser suficientemente negro para discriminação, mas não para políticas públicas'", desabafa. >
Como homem autodeclarado pardo, ele ainda relembra preconceitos que passou durante o colégio: "Fui submetido a comentários sobre as características do meu nariz, do tipo 'vai roubar o ar da sala' [...] e, foi com esses tipos de ofensas, que tive a percepção de que as pessoas brancas não me viam como branco e as pessoas negras não me viam como negro".>
Neto e filho de pessoas negras, Arthur considera que não somente a autodeclaração foi negada, como também a oportunidade de acesso à educação. Sem esperanças para ocupar a vaga, o novo plano é recalcular a rota e se candidatar pelas cotas sociais. >
"Este paradoxo cruel representa a luta diária que enfrentamos para sermos reconhecidos em uma sociedade que muitas vezes prefere ignorar nossa existência ou negar nossas experiências, mas o último censo do IBGE revelou que somos maioria no Brasil", declara.>
Uma segunda possibilidade para Arthur, é acionar a Justiça por meio de uma ação cível para solicitar, não apenas seu direito de ocupar a vaga ao qual foi aprovado, como indenização pelos transtornos. De acordo com o advogado Bruno Moura, a ação com pedido de liminar iria garantir que o jovem consiga iniciar seus estudos imediatamente. >
“Dado os dois indeferimentos administrativos vindo da Ufba, o próximo passo é judicializar uma ação cível, com pedido de liminar, ou seja, uma tutela antecipada, para que a autoridade judicial, o juiz ou juíza, antes de analisar o mérito do processo, analise a liminar, com o objetivo de fazer com que o jovem estudante não tenha que aguardar todos os tramites jurídicos para iniciar sua graduação, mas para que ele espere o andamento do processo já matriculado no seu curso, assistindo às aulas”, explica. >
Após a liminar, Bruno afirma que Arthur pode pedir ainda uma indenização por danos morais, referentes ao constrangimento diante da recusa da universidade, caso a Justiça reconheça a autodeclaração do estudante através de identificação de provas e realização de audiências. >
"Para além desse pedido de liminar, para imediato ingresso na graduação, um dos pedidos [a serem feitos] deve ser o pedido de danos morais, que é o pedido de condenação a título de indenização, afinal, todo transtorno, sofrimento e dor atravessado pela parte autora deve ser indenizado pela parte ré”, diz o advogado. >
As avaliações da banca de análise racial se tornaram alvo de polêmica nas últimas semanas após casos de recusa da matrícula de candidatos selecionados por meio de cotas raciais. >
No início de março, um estudante aprovado no curso de direito da Universidade de São Paulo (USP) ajuizou ação contra a instituição depois da comissão retirá-lo da vaga por entender que ele não seria pardo. A 14ª Vara da Fazenda de São Paulo concedeu uma liminar determinando que a Universidade reserve a vaga para o estudante.>
A justificativa que consta no parecer da USP foi que o aluno Glauco do Livramento, de 17 anos, tinha pele clara, lábios afilados e cabelo liso. Já a decisão judicial aceitou o pedido da defesa do estudante e criticou a verificação a forma que foi feita a avaliação - por meio de uma foto e uma videochamada. >
Apesar das últimas denúncias, o Coordenador Geral Estadual do Movimento Negro Unificado da Bahia (MNU-BA) defende que as bancas são necessárias para evitar fraudes no processo, no entanto, considera que o método requer melhorias. Ele cita a necessidade de que a comissão seja diversa, sendo formada por pessoas negras de dentro e fora do ambiente acadêmico. >
"O risco é que as bancas acabem sendo formadas majoritariamente ou exclusivamente somente por pessoas brancas, ignorantes quanto aos assuntos que permeiam o tema e desinteressadas na própria eficiência das cotas", prevê. >
"A presença de pessoas negras representam para candidatos cotistas, a sensação de menos possibilidade de riscos de vítimas de racismo no processo de avaliação que serão submetidos para o acesso à cota. São diversos os relatos de pessoas negras que se sentiram coagidas, constrangidas ou prejudicadas, quando verificaram que as bancas de heteroidentificação eram exclusivamente constituídas de pessoas brancas", reclama. >
A reportagem também solicitou para a Ufba o número de candidaturas aceitas e indeferidas para cotas raciais no último ano, mas a universidade informou que os servidores estão em greve, portanto, não há como filtrar os dados no momento. >
* Com informações de Elaine Sanoli>