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Nilson Marinho
Publicado em 23 de abril de 2025 às 05:00
De segunda a quarta-feira, Nega Tonha, de 49 anos, dedica-se exclusivamente ao trabalho como empregada doméstica em Juazeiro, no norte da Bahia. No restante da semana, divide-se entre as obrigações na casa dos patrões e aquilo que mais lhe faz feliz: o futebol. Nega Tonha é goleira, mas não uma qualquer. Tem habilidades de destaque: reflexos rápidos, resistência ao impacto, leitura de jogo e, acima de tudo, coragem. Muita coragem. E qualquer morador da cidade banhada pelo Velho Chico sabe disso. >
Mas a coragem a que nos referimos vai muito além da bravura de quem se atira numa dividida, em alta velocidade, para impedir o gol adversário. A verdadeira coragem de Nega Tonha está no fato de ser a única mulher trans em campo. Em meio a 22 jogadores que se identificam com o gênero com o qual nasceram, ela é a exceção que desafia a norma.>
Segundo ela, não há muito com o que se preocupar. Por onde passa, é respeitada. Em mais de 20 anos jogando por clubes esportivos amadores de Juazeiro, nunca ouviu sequer uma piada.“Eu sempre jogo maquiada, com as unhas pintadas, mas nunca fui desrespeitada dentro de campo”, afirma.>
A infância no bairro do Cajueiro foi simples, vivida ao lado dos dois irmãos e de seus pais. Foi lá, ainda nos primeiros anos de vida, que Nega Tonha começou a se encantar pelo futebol. >
Enquanto aprimorava suas habilidades com a bola nos pés, e com as mãos, debaixo das traves, também começava a entender algo mais profundo: não se reconhecia no gênero com o qual nasceu. A transição veio por volta dos 20 anos e, com ela, um abalo na relação com o pai, que, num primeiro momento, teve dificuldade em aceitar que sua filha caçula estava apenas deixando florescer quem sempre foi por dentro. >
Nega Tonha já defendeu as cores de diversos times amadores de Juazeiro, como Grêmio, XV de Novembro, Barro Vermelho e Colonial. Foi em um desses clubes que encontrou não apenas espaço, mas um verdadeiro incentivo. Alguém que acreditou em seu talento: o técnico Jorjão, que hoje já não está mais entre nós.>
“Sou muito grata ao Jorjão. Foi ele quem me deu visibilidade, quem acreditou em mim de verdade. Disse que queria me transformar em uma goleira conhecida na cidade, e conseguiu. Foi graças a ele que tive a chance de jogar pela primeira vez no estádio municipal. Aquilo marcou a minha vida.”>
A história de Nega Tonha se cruza com a infância de Tiago Di Mauro. Nascido em Salvador, mas criado em Juazeiro, ele era levado pelo pai, presidente do time amador Barro Vermelho, para acompanhar as partidas de futebol. E foi ali, à beira do campo, que o garoto se encantou com a figura imponente da goleira trans debaixo das traves. “Eu sempre soube quem ela era. Ela, claro, não sabia quem eu era. Depois me mudei para Salvador, e mais tarde para Londres. Passamos quase 30 anos sem nos ver. Mas nunca deixei de lembrá-la, não apenas como goleira”, relembra.>
Tiago Di Mauro é formado em Cinema e Vídeo, e ao concluir sua graduação, criou um projeto de longa-metragem que o impulsionou para Londres, onde vive há 20 anos. Desde então, tem se destacado no cenário audiovisual, dedicando-se à direção de filmes e videoclipes, além de atuar na produção financeira de grandes produções internacionais. A história de Nega Tonha chamou sua atenção pela força e singularidade da personagem. Fascinado por sua trajetória, >
Tiago decidiu transformá-la em um curta-metragem que mistura ficção e realidade, projeto que atualmente está em fase de finalização.>
O primeiro contato de Tiago com Nega Tonha, no entanto, a deixou cautelosa. "Eu pensei: como pode uma pessoa que mora tão longe ter interesse em contar a minha história? Achei estranho, por isso, recuei", relembra a goleira. Porém, a confiança da esportista foi conquistada após um encontro presencial em Juazeiro, onde a conexão entre eles se fortaleceu.>
O projeto foi à frente e as cenas foram gravadas neste ano em Juazeiro. Intitulado Nega tonha, o filme narra um dia decisivo na vida da goleira: a final da Liga dos Sertões, campeonato fictício inspirado nas competições amadoras da região. Em campo, além de defender bolas difíceis, a personagem revive memórias da infância e juventude, em uma costura sensível entre passado e presente, como revela Tiago.>
Ramon Souza, artista que também se identifica dentro do espectro de gênero fluido e que mergulhou na preparação durante semanas, estudando os gestos, a fala e a personalidade da goleira, foi o escolhido para o papel.>
Gravado em Juazeiro com equipe majoritariamente local, o curta foi viabilizado por meio da Lei Paulo Gustavo e de um edital internacional do Instituto Britânico de Cinema voltado a narrativas LGBTQIAPN+ da América Latina e da África. “Quis fazer um filme com sotaque, com a poeira do sertão, com a textura do lugar onde cresci. É um projeto local com força internacional”, afirma o diretor, que já trabalhou na produção financeira de grandes filmes da Disney, Amazon, BBC e Universal.>
Ainda sem data oficial de lançamento, Nega Tonha deve estrear em festivais antes de chegar ao público em geral. Para Tiago, o filme é mais do que um retrato da protagonista. É também um ato político e de memória. “Ela é uma mulher trans que conquistou respeito no futebol amador do sertão. Isso por si só já é extraordinário. Mas o que me comove mesmo é o carinho que ela recebe. Todos a conhecem, aplaudem, torcem por ela. Isso precisa ser contado.”>