Parada LGBTQIA+ da Bahia acontece neste sábado (5); saiba como o movimento surgiu

Em 2020, 19ª edição será digital com transmissão do CORREIO e Me Salte

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  • Da Redação

Publicado em 5 de dezembro de 2020 às 05:24

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arquivo CORREIO

Perceber-se passando por uma situação de preconceito é como levar um soco no estômago. Enquanto você vai se dando conta, a respiração fica mais forte e é possível escutar cada movimento do próprio corpo. O constrangimento dispara uma descarga de adrenalina. O tempo passa a escorrer lento. A materialização do pesadelo está à sua frente, ao redor, na alma. Depois da enxurrada de cortisol por conta do estresse, vem a fraqueza, a pressão baixa, tudo fica insosso e resta a pergunta: o que foi que eu fiz para merecer isso? Saber que a resposta não vai além de existir, dói. Pessoas LGBTQIA+ convivem com essa dor em diversos momentos da vida. E, por muito tempo, também lidavam com a solidão, o desamparo de não ter como garantir dignidade e respeito em uma sociedade preconceituosa ao extremo.

O Grupo Gay da Bahia (GGB), uma das mais renomadas instituições no mundo quando se trata de lutar pela causa das pessoas LGBTQIA+, nasceu com o intuito, justamente, de reduzir essa solidão na busca por direitos. A fundação do GGB aconteceu pouco depois de Luiz Mott, recém-chegado a Salvador, sair com o namorado para passear no Porto da Barra e levar um murro na cara por estar de mãos dadas com o homem que amava.  O ano era 1980. A partir daquele dia, capítulos importantes na história do movimento LGBTQIA+ brasileiro começaram a ser escritos.

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Decano do movimento, Luiz Mott é um dos fundadores do GGB. Professor aposentado de antropologia pela Ufba, ele conta que nessas quatro décadas sofreu uma série de reveses, mas também já conquistou muitas vitórias à frente da instituição: a equiparação da homofobia ao racismo, legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo e o uso do nome social por parte de pessoas transgênero são alguns bons exemplos. Olhando com a visão de hoje, pode parecer corriqueiro, mas não se engane: tudo isso era impossível há quatro décadas."A polícia cada vez agride e mata menos LGBT's. Quando fundamos o grupo, todo ano policiais matavam gays e travestis com espancamentos. Fizemos cursos de capacitação com policiais de todo o Brasil e já há uma consciência de maior respeito das polícias. A imprensa e as empresas estão aprendendo a nos chamar como queremos ser chamados, sem termos depreciativos como traveco, boiolas e uma série de atrocidades que eram publicadas sobre nós", conta Luiz Mott. Luiz Mott na Parada LGBTQIA+ de 2016 (Foto: Evandro Veiga/Arquivo CORREIO) Por ser pioneiro, o GGB teve participação e influência direta na criação de outros grupos semelhantes por todo o Nordeste, como Alagoas, Pernambuco e Sergipe. Quem tem essas memórias frescas é o presidente do GGB, Marcelo Cerqueira. 

Apesar das quatro décadas do grupo, uma das iniciativas mais conhecidas do GGB tem só metade desse tempo de vida, a Parada LGBTQIA+, que no começo se chamava Parada Gay, inspirada por movimentos de São Paulo e Rio de Janeiro, onde aconteceu a primeira parada da diversidade brasileira, em 1997. Maior Parada do mundo, a de São Paulo aconteceu no mesmo ano e animou grupo de todo o Brasil a buscar seu espaço.

Marcelo Cerqueira conta que o GGB não tinha, originalmente, a ideia de fazer festa. "A gente era mais chegado na guerrilha, no protesto, na briga. Fazer festa não era muito a nossa", relembra. No entanto, o que motivou o grupo a colocar o bloco nas ruas do Centro Histórico há 19 edições da Parada baiana foi justamente a empolgação de pessoas que foram ao Rio e São Paulo e queriam fazer algo semelhante em Salvador."Entendemos que esse tipo de movimento não poderia ficar com pessoas avulsas, era preciso ser feito por uma instituição e aí tomamos a frente e fizemos a primeira parada. Foi uma operação de guerra, muita gente não acreditava que ia acontecer. É um momento muito especial, lembro com muito carinho por ter sido a primeira", diz Cerqueira..Leia mais:

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Luiz Mott aponta que antes de acontecer a Parada, o GGB organizava a mareata no dia 28 de Junho, data mundialmente lembrada pela rebelião de Stonewall, quando gays, lésbicas e transgênero enfrentaram a polícia de Nova York, em 1969, em resposta à violência que sofriam dessa mesma polícia no bar chamado Stonewall.

Foram três noites de muita violência, com a polícia saindo derrotada dos conflitos que viraram um marco na luta pela dignidade de pessoas LGBTQIA+. Desde então, o 28 de junho se tornou referência e é celebrado por todo o mundo.

Na mareata, o GGB ia de barco até o Forte de São Marcelo, onde está enterrado o corpo de Diogo Botelho, Governador-Geral da Bahia no século XVII, que era gay.

Junho é um mês de chuva e, por conta do São João, muita gente está fora de Salvador. Isso motivou o GGB a mudar a data da Parada LGBTQIA+ daqui para Setembro. E isso foi um divisor de águas no evento, que passou de um público médio que era de 200 mil pessoas para 500 mil, chegando a registrar 700 mil pessoas nas ruas do Centro Histórico. Na única vez em que aconteceu fora do seu circuito tradicional, por conta de reformas na Avenida Sete, e se mudou para o Dique do Tororó, em 2019, o público foi de 1 milhão de pessoas.

Especialmente este ano, a Parada LGBTQIA+ foi adiada para dezembro, em virtude da pandemia de covid-19. A 19ª edição do evento, pela primeira vez na história, será 100% online. A grade de programação contará com mesas de debate, espaço para militância e apresentações artísticas, em um programa online das 18h até 20h, exibido nas redes sociais do Me Salte (@me_salte) e CORREIO (@correio24horas), no Instagram, Facebook e Youtube.

"A Parada funciona como ritual de iniciação para jovens gays, lésbicas, transexuais, que pela primeira vez vão às ruas sem medo de gritar que é LGBTQIA+, pegar na mão de uma pessoa do mesmo sexo, dar um beijo em público. Infelizmente, isso não será possível neste ano, mas nossa esperança é que essa juventude participe ouvindo depoimentos de militantes e simpatizantes, que reforcem a consciência. O sentimento de que nós estamos certos e os homofóbicos, transfóbicos estão errados", enfatiza Luiz Mott.

Doutora e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (Nucus/Ufba), Léa Santana aponta que a parada é o grande carnaval para o movimento e comunidade LGBTQIA+. Esse carnaval não é somente no sentido de festa de rua e celebração. Segundo a especialista, vai muito além porque coloca publicamente o que ela chama de política da felicidade, uma forma de enfrentamento poderosa contra a necropolítica social que atravessa a vida dessas pessoas."Viver com alegria é profundamente político. Momentos como a parada nos permite abraçar e comemorar publicamente aquilo que nós somos. Isso significa muito na sociedade que vivemos", diz Léa.A especialista aponta que o movimento LGBTQIA+ não é diferente de outros espaços dentro da sociedade no que diz respeito a machismo e sexismo e que por isso não são raros os casos de invisibilização de mulheres dentro da própria causa. Isso acontece porque os movimentos sociais são feitos de pessoas, que estão em constante construção e desconstrução dos seus conceitos e formas de viver.

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Racismo

Tema da 19ª Parada da Bahia, o “racismo na comunidade LGBTQIA+” tem origem investigativa no Relatório 2019 do Grupo Gay da Bahia, intitulado “Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil”. O estudo do GGB evidencia que os homicídios contra pessoas LGBTQIA+ pardos e pretos dominam 37,08% dos casos, enquanto a categoria “branca” detém 36,78%.

O relatório ainda mostra que os casos de violência cresceram exponencialmente entre 2010 a 2019, resultando em uma média gradativa de 250 mortes todos os anos. Em 2017, o número de óbitos entre a comunidade LGBT+ cresceu quase o dobro  - 445 casos. A Bahia segue como o 2º estado que mais mata LGBT’s no Brasil.

Considerada um dos levantes sociais mais importantes na luta a favor dos direitos da comunidade LGBTQIA+ na Bahia, a Parada reúne milhares de vozes todos os anos para o fim da lgbtqia+fobia desde 2002 , na primeira edição, que teve 15 mil participantes. Esse ano, o evento sensibiliza a população para um evento virtual e informativo, mas sem deixar de lado a “fechação”, segundo o criador do “Me Salte”  - primeiro canal LGBTQIA+ do jornal CORREIO* - e curador da Parada LGBTQIA+ 2020, Jorge Gauthier.“É a ‘Parada LGBTQIA+ da Bahia’, então a gente vai trazer para esse programa ao vivo a energia da ‘Parada’, só que com muito mais reflexão, informação, respeito e obviamente, fechação. O objetivo principal é chamar as pessoas para refletirem. Quando falamos as questões sobre ‘lgbtqia+fobia’, normalmente não associamos o olhar racial intrínseco a ela. Os LGBTQIA+ de pele negra estão extremamente mais vulneráveis, todos os dias, do que as pessoas que não são negras. A ‘Parada LGBTQIA+ desse ano é um grito por respeito à diversidade que existe tanto dentro, como fora da comunidade”, conclui Gauthier.O projeto Diversidade tem realização do GGB, produção Maré e parceria e criação de conteúdo Correio/Me Salte e Movida; e patrocínio do Grupo Big e Goethe Institut.SERVIÇO: 19ª Parada do Orgulho LGBTQIA+ da Bahia Quando: 5 de dezembro, sábado; Horário: Das 18h até 20h. Onde: ao vivo nos canais “Me Salte” e Jornal CORREIO* (Instagram, Facebook e Youtube);

PROGRAMAÇÃO COMPLETA:Debates:

*Mesa 01 – Bichas pretas Alan Costa – Formado em Letras Vernáculas pela UNEB, atua como produtor cultural e artístico na cena soteropolitana. Ismael Carvalho – Criador de conteúdo digital, cofundador e diretor de criação da Preta Agência de Comunicação.

*Mesa 2 – Negras, lésbicas e masculinizadas  Jandira Mawusí – Pedagoga pela UNEB, idealizadora do Coletivo Merê, é uma das representantes da Caminhada Contra o Ódio e o Racismo Religioso que acontece há mais de 15 anos em Salvador. Bruna Bastos – Integrante do grupo de pesquisas Rasuras UFBA, pesquisa e estuda Letramentos de Reexistência produzidos por lésbicas negras. É idealizadora da página @sapatonaaentendida onde dialoga sobre lesbianidade e Afroperspectiva.

*Mesa 3 – Transexuais e travestis negras não trabalham apenas em salão  ÉriKa Hilton – Primeira vereadora trans e negra eleita de São Paulo. A mulher mais votada da cidade com 50.508 votos, pelo Psol. Inaê Leoni –  Mulher trans, negra, baiana de Salvador.  Licenciada em Teatro da UFBa, em 2010, começou a estudar canto de modo sistemático.

*Performances artistíticas:

Matheuzza (atriz, educadora e pesquisadora nas questões de raça, sexualidade e gênero); Bagageryer Spilberg (apresentadora, transformista e realizadora de concursos de beleza); as cantoras Doralyce e Josyara; o rapper Hiran, uma das maiores identidades do rap nacional; e Malayka SN, que é DJ, visual artist e drag.