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Fernanda Santana
Publicado em 13 de julho de 2024 às 05:00
Depois de quatro séculos de espera, o povo tupinambá quer rever um ancião que voltou para casa. O ancestral sagrado, para essa etnia indígena, é um manto vermelho com penas da ave guará que desembarcou no Brasil sob sigilo nas últimas semanas. Desde o século 17, ele estava na Dinamarca.
A relíquia deu o primeiro passo do retorno no dia 15 de maio, quando foi retirada de exposição pelo Museu Nacional de Copenhague, o Nationalmuseet, para ser enviada ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Antes disso, em reuniões, lideranças e anciãos tupinambá que vivem no sul da Bahia planejavam os detalhes do reencontro que ainda não aconteceu.
“Fiquei feliz por ele estar no Brasil”, afirma a cacique Valdelice Tupinambá, “mas triste, porque não achávamos que o manto pudesse chegar sem nós estarmos lá”.
O traje, com 1,2 metro de altura e 60 centímetros de largura, não é apenas divino para os tupinambá. É um símbolo da história do Brasil, confeccionado quando esse povo indígena predominava da costa de São Paulo até o Ceará, no século 16.
“Os anciãos também estão como eu. Eu estava falando: ’Quando o manto chegar, teremos que estar lá para receber, e isso não aconteceu”, fala Valdelice, citando os encontros do grupo de trabalho montado pelo Museu Nacional para os preparativos da recepção.
Os integrantes do Conselho Indígena Tupinambá de Olivença (Cito) se encontraram na tarde de quarta-feira (10) para escrever um manifesto em que cobram à diretoria do museu do Rio o reencontro com o artigo sagrado. Eles são alguns dos 4,6 mil indígenas no Território Tupinambá de Olivença, formado por 23 aldeias, entre os municípios de Ilhéus, Buerarema e Una.
Dos 14 caciques que chefiam essas comunidades, oito assinaram o documento. Foi cacique Valdelice quem, dois dias antes desse encontro, recebeu de um representante do museu a notícia da chegada do manto e avisou aos conterrâneos. A instituição, no entanto, não compartilhou a data do retorno, nem o atual endereço do manto.
"Esse manto carrega a história e a cultura do nosso povo. Solicitamos ao museu que retifique sua postura", escreveram os indígenas ."Foi estabelecido que haveria uma recepção coordenada pelo povo Tupinambá, como nossos anciãos orientavam, para o bem espiritual do nosso povo e do próprio manto", afirmam em outra passagem do texto.
O desejo inicial do Conselho era que essas celebrações acontecessem em Olivença, onde vivem. Consultado pelo museu no Rio, o de Copenhagen desaconselhou deslocamentos do manto, pela fragilidade da peça, sensível até à mínima exposição de luz. Depois da negativa, o plano (também frustrado) era recepcionar o manto no aeroporto.
A entidade que reúne os tupinambá enviará mais uma carta, desta vez à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e organizações não governamentais, para pleitear recursos para uma viagem ao Rio de Janeiro. Lá, 100 pessoas querem montar uma vigília para celebrar o manto.
Os indígenas sabiam da volta do artefato ao Brasil desde junho do ano passado. Depois de um ano de negociações com a Embaixada brasileira, o Nationalmuseet afirmou que devolveria um dos quatro mantos tupinambás que possui para ajudar a reconstruir o Museu Nacional, destruído por um incêndio em 2018.
A expectativa é que o manto seja apresentado à sociedade em agosto, segundo Valdelice. “Mas a gente não é o público. Nós somos parte do manto. O público pode entrar a hora que quiser. A gente é outra situação. Queremos participar do cerimonial, e também ir antes”, protesta.
O Museu não comentou a situação, nem confirmou a data da cerimônia pública, que acontecerá "após a adoção de todos os procedimentos necessários para a perfeita conservação dessa peça tão importante".
"Pedimos a compreensão de todos, pois queremos organizar a apresentação do manto, com todo cuidado e respeito aos saberes dos povos indígenas, com quem estamos trabalhando em harmonia e contato direto, através do Ministério dos Povos Indígenas", disse a instituição, por nota.
Aos 84 anos, Rosário Tupinambá, um dos anciões consultados durante a reunião do Conselho, desabafa: “Merecemos esse reencontro”. Foi com o pai, indígena nascido em 1902, que ele aprendeu a sonhar com a volta da relíquia. É assim, de geração em geração, que a história do manto sobrevive na memória, já que a indumentária deixaria de ser produzida.
“Precisamos fazer uma visita. Fiquei muito triste de não ter recebido a notícia. A gente não se aproximou. No momento, quero ver onde ele está”, diz Rosário.
A capa sagrada, segundo a crença de alguns deles, deixou pela primeira vez a aldeia para ficar guardada na Igreja de Nossa Senhora de Olivença, depois que os jesuítas chegaram, no século 16.
A hipótese mais aceita é que ele tenha sido levado por Maurício de Nassau à Dinamarca, depois da ocupação holandesa do Nordeste brasileiro. Na Europa, mantos tupinambás eram usados por nobres em ocasiões especiais, o que denota poder. Depois, eles avolumaram acervos de museus.
Nani Tupinambá, cacique de três aldeias tupinambá, não conhece os detalhes dessa cronologia e uso, mas também assinou o documento enviado ao Rio. “Estávamos preparados para ir para lá. Todos ficaram surpresos, alguns ficaram tristes”, afirma.
O manto na Bahia
“Não tem divergência que o museu do Rio é o único com condição de receber esse manto agora. Mas com ele aqui [no Brasil], precisamos de um diálogo com a Bahia, com o governo, para pensar se a Bahia não pode receber esse manto”, torce ele. A Secretaria de Cultura do Estado não respondeu à reportagem.
O cacique Nani faz parte de uma ala de indígenas que acredita que, próximo deles, o manto fortaleceria as lutas locais, como acontecia no passado. Em momentos que exigiam tomadas de decisões, como o que fazer diante de inimigos, e cerimônias religiosas ou formais, lideranças utilizam a capa sagrada. Para a cultura local, evocava força e sabedoria.
O principal pleito, hoje, é a demarcação do território indígena. Sem a propriedade da terra, os tupinambá enfrentam a pressão do turismo e das propriedades rurais.
Por isso, quando o retorno do manto foi comunicado há um ano, cacique Valdelice tentou emplacar um antigo plano seu: construir um memorial indígena, onde, entre outros artigos, o manto poderia ficar alojado, até a construção de um espaço próprio.
“É de nosso interesse fazer esse memorial, acionamos o governo da Bahia sobre isso, mas depois os indígenas mudaram a proposta, de 'memorial' passou a ser portal”, afirma Geraldo Magela, secretário de Cultura de Ilhéus, onde fica a maior parte do território tupinambá. “Mas, precisamos ser realistas, não temos estrutura para receber um manto”.
O diálogo sobre o manto, na verdade, tinha sido iniciado pela mãe de Valdelice, conhecida como Amotara, em maio de 2000.
Naquele ano, o manto tupinambá que retornou definitivamente ao Brasil foi emprestado pela Dinamarca para uma exposição em São Paulo que apresentou um panorama da história da arte brasileira desde antes da colonização dos portugueses.
Amotara visitou a mostra com outro ancião, Aloísio, e voltou para casa decidida a fazer com que a relíquia, sobre a qual ela ouvia falar desde criança, não fosse embora. Apesar da tentativa, o manto partiu, mas a liderança, acompanhada de parceiros, elaborou três pedidos de devolução ao museu de Copenhague, de acordo com Valdelice. A instituição nega ter recebido essas solicitações.
Só em 2022, quando ela e Aloísio já tinham morrido há quatro anos, uma esperança ressurge.
Em setembro daquele ano, Glicéria Tupinambá, artista e antropóloga baiana, foi convidada pelo Museu de Copenhague para uma visita aos quatro mantos guardados na instituição. Dos 230 mil itens do acervo, 1,3 mil saíram do Brasil, e 30 são indígenas, de etnias não especificadas.
De frente para o manto de guará, Glicéria conta que ele revelou o regresso ao Brasil. “O manto não é um objeto, é sagrado e eu realizei essa escuta”, lembra.
“E a vontade do manto que ouvi é estar no Rio. Algumas pessoas não entendem o gerenciamento do próprio manto. A doação é de um museu nacional para um museu nacional. É algo respeitoso. A escuta principal tem que ser do próprio manto. Ele escolheu o lugar para onde está vindo. Se o manto quiser ir para tal lugar, estarei lá ouvindo", afirma a estudante do Museu Nacional.
Desde 2006, ela também tem resgatado técnicas dos antepassados para confeccionar novos mantos. Um deles está em exposição na Caixa Cultural, em Salvador, até o dia 4 de agosto. Também por esse trabalho tinha sido convidada à Europa, onde encontrou o diplomata do Brasil na Dinamarca.
A antropóloga não sabia os detalhes, mas Rodrigo de Azeredo costurava o acordo de doação do manto. Os trâmites foram iniciados em 2021, quando o diplomata desembarcou em Copenhague, que testava a reabertura de espaços durante a pandemia.
Um dos primeiros pontos turísticos que Azeredo visitou foi o Nationalmuseet. Acompanhado da esposa, ele se impressionou tanto com a beleza do manto vermelho exposto, quanto, depois, com a descoberta de que o Brasil nunca havia solicitado o retorno do artigo. Pelo sigilo, ele evitou contar à indígena que estava em diálogo com o Nationalmuseet sobre a possibilidade de doação do manto.
A devolução de objetos históricos que foram adquiridos durante colonizações ganhou força ao redor do mundo na última década, impulsionada pela maior visibilidade de comunidades antes marginalizadas.
Há três modalidades de transferência desse tipo de bem: a doação, quando as negociações acontecem entre museus ou pessoas; a restituição, tendo os Estados como protagonista; e a repatriação, que carrega uma conotação mais política.
“Liguei para a direção do museu do Rio de Janeiro, que estava se mobilizando para receber doação. Pedi que elaborassem uma carta, no tom de pedido de doação, e que a direção entrasse em contato com lideranças tupinambás”, detalha Azeredo. Um mês depois, as cartas chegaram.
Além da direção do Museu Nacional, escreveram os caciques Valdelice e Rosivaldo Ferreira, o Babau, que é irmão de Glicéria.
A possibilidade de o manto ser doado para a Bahia foi cogitada pelo embaixador Azeredo. “Pensei nisso, mas achei que poderia comprometer o sigilo. O museu da Dinamarca pediu esse sigilo, achavam que deveria ser assim, porque ele estava em acordo operacional”, conta.
Além disso, o apelo da reconstrução do museu nacional dos brasileiros, depois do incêndio, haveria de ter mais impacto na decisão dos dinamarqueses, já que outros países, como a Alemanha, e colecionadores estavam mobilizados para doar artigos e recursos à instituição.
O cacique Babau é a favor da permanência do manto em terra carioca, mas acredita que a devolução pode abrir precedentes. “O Rio é tupinambá, onde aconteceram os nossos primeiros enfrentamentos navais. E lá se criou o museu nacional. Aí, o manto no Brasil,[...] entra a segunda parte da história”, completa o doutor Honoris Causa pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
A página dois, para ele, é o questionamento da vinda de outros mantos, aí sim para o estado. Há 11 deles em seis países — além da Dinamarca, na França, Bélgica, Suíça e Itália. Não há solicitações de retorno de nenhum deles, segundo essas instituições.
João Pacheco, antropólogo e curador das coleções etnográficas do Museu Nacional do Rio de Janeiro, conversou por telefone com a reportagem um mês antes da chegada do manto. Ele concordou com Babau. “Estamos iniciando um movimento que vai ter desdobramentos. Um caso bem sucedido de doação pode ser seguido rapidamente por outros museus", afirma, esperançoso.
Pacheco, que há quatro décadas trabalha com indígenas, disse, na ocasião, achar natural o desejo de alguns tupinambá de que o manto esteja próximo: "Cada indígena tem seu entendimento. Cada lugar tem suas lideranças, e há divisões entre eles. E o GT procura ter sensibilidade para não se envolver em lutas diferentes, mas que haja uma posição comum, e acho que há essa parceria hoje”. "Mas minha autoridade é limitada a ser antropólogo e curador", destacou.
O historiador Rodrigo Christofoletti, professor de Patrimônio Cultural da Pós-graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), aponta duas frentes sobre a restituição de bens herdados da colonização: de um lado, a reivindicação de devolução dos povos dos quais foram retiradas peças, e, do outro, o discurso de que essas peças estão mais seguras em museus.
"Há a necessidade dos museus abrirem seus olhos para a participação dos descendentes das peças. Sem isso, continuaremos a fazer colonização interna. Não tiro a razão das nações originárias quererem que os objetos voltem, mas é preciso dotar estes espaços de viabilidade de manutenção e salvaguardado desse espólio. O museu em co-curadoria é uma opção viável", explica o professor, "mas resta perguntar aos tupinambá se eles pensam dessa forma".