'Você não tem forças nem para chorar', diz assistente social que tem fibromialgia

Funcionária pública, ela teve que mudar de função. Saiu do trabalho de campo para atividades internas

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  • Thais Borges

Publicado em 2 de dezembro de 2023 às 15:13

Há três anos, a assistente social Mariana Queiroz foi diagnosticada com fibromialgia. Desde então, convive com a dor constante
Há três anos, a assistente social Mariana Queiroz foi diagnosticada com fibromialgia. Desde então, convive com a dor constante Crédito: Paula Fróes/CORREIO

As dores da assistente social Mariana Queiroz, 38 anos, começaram em 2019. Um ortopedista disse que era na coluna. O médico especialista em coluna fez ressonância e não encontrou nada. Com a ginecologista, investigou endometriose - também não era. Consultou um gastroenterologista para saber a possibilidade de gastrite, que também deu negativa. Enquanto todos os exames davam negativo, Mariana chegava a acordar chorando de dor.

“Comecei a achar que era da minha cabeça. Teve até um descrédito das pessoas”, lembra ela, que passou por uma crise de labirintite em agosto de 2019. Ficou internada, fez exames neurológicos e, novamente, nada. Em novembro daquele ano, após uma viagem para a Chapada Diamantina, foi parar na emergência novamente com as dores. Consideraram dengue, depois chikungunya. Não era nada disso. O diagnóstico de fibromialgia só veio em março de 2020, por uma reumatologista - que, antes disso, investigou se era algo autoimune.

Mariana foi encaminhada a um psiquiatra e também para acompanhamento em uma clínica da dor, onde faz bloqueio venoso a cada 15 dias. Além disso, por mês, são cerca de R$ 350 apenas nos medicamentos. Os de uso contínuo são um ansiolítico e o regulador de humor, mas a prescrição para alguns momentos inclui um relaxante muscular e um derivado de morfina. Por um tempo, experimentou canabidiol, mas o valor elevado - cerca de R$ 750 mensais - tornou a opção inviável.

Na rotina, precisa incluir atividades físicas leves como pilates, ioga e dança. “Meu ritmo de vida não é mais o mesmo e não consigo ter a mesma disposição. Mesmo com o tratamento, não significa que a crise não vai vir. Estou numa crise desde setembro. Já tive que tomar morfina, já fiquei afastada seis meses do trabalho”, conta.

Funcionária pública, ela teve que mudar de função. Saiu do trabalho de campo para atividades internas. Com a alta sensibilidade pela fibromialgia, temperaturas frias ou quentes também provocam dor. “A concentração diminui, a memória falha. Eu esqueço coisas bestas. Hoje, meus amigos conseguem compreender melhor, mas as pessoas acham que por você estar com dor, tem que andar como uma maluca. Como você está com dor e está com unha feita, cabelo arrumado? Mas a doença já tira muita coisa de você”, desabafa Mariana. Ela fazia segunda graduação em Farmácia na Universidade Federal da Bahia, mas teve que abandonar o curso.

Não é incomum encontrar quem não acredite na dor. Hoje, porém, ela diz buscar a melhor forma de levar a rotina. Os médicos nunca conseguiram identificar o que causou a doença e Mariana ainda acredita que boa parte dos profissionais não está preparada para atender pacientes com fibromialgia, mesmo na rede privada.

“Estou vindo de um atestado de três dias porque terça saí chorando do trabalho. A dor não passa. Não é como uma dor de batida. A indisposição, a fadiga é constante. A dor me acompanha o tempo todo. Tem horas melhores, mais aceitáveis e horas que não. Fora os efeitos secundários, como o calor que piora, o frio que piora, a insônia”, relata.

A fibromialgia leva à hipersensibilidade auditiva e visual. Até alguns tecidos de roupas incomodam. No dia em que conversou com a reportagem, ela classificou a dor que sentia em 7. Numa crise, chega a 10. “É um descontrole do sistema nervoso que ativa a dor sem nenhum motivo, sem estímulo. No pico, você não tem forças às vezes nem para chorar”.

Para Mariana, as pessoas podiam ser mais compreensivas e empáticas com quem tem dor crônica. “Escuto que é falta de Deus, que é falta de vontade, que o desânimo é porque você quer. E não é. É uma condição do seu corpo e ninguém gostaria de estar nessa condição”, enfatiza.

Mais frequente

A dor crônica mais frequente na maioria dos países é a lombalgia - ou seja, a dor nas costas. Segundo o médico Bruce Salles Fernandes, estudos clínicos têm apontado que essa é a principal causa de anos vividos com baixa qualidade de vida no mundo, além de ser uma das principais causas de incapacidade laboral.

“Se você tem pacientes com lombalgia, acaba gerando uma coisa muito comum nas empresas que é o absenteísmo, ou seja, o paciente faltando trabalho por causa de dor nas costas. Pior que isso, gera o presenteísmo, que é aquele paciente com dor nas costas que vai ao trabalho ainda assim, mas não produz da mesma maneira que produziria se estivesse em condições normais”, explica.

Há, ainda, as dores oncológicas, que estão relacionadas tanto ao câncer em si quanto ao tratamento. A abordagem terapêutica desses quadros tende a ser difícil, intensa e até refratária de outros tratamentos - quando não há melhora.

“Algo que às vezes nos deixa muito preocupados é que mesmo entre aqueles pacientes que sobrevivem ao câncer, 30% deles evoluem com dor crônica e muitos não têm o atendimento adequado. Não procuram um médico (para dor) e acreditam que o processo faz parte da doença”, explica a médica anestesiologista Anita Rocha, com atuação em Medicina da Dor.

De acordo com ela, há uma prevalência de dor de origem osteomuscular, que inclui desde pacientes com artrose aos que têm dor na coluna cervical, torácica ou lombar por doenças degenerativas e hérnia de disco. Muitas vezes, essa condição é decorrente de posturas inadequadas durante o dia. Na pandemia da covid-19, por exemplo, isso se tornou algo frequente por conta do aumento de pessoas que passaram a trabalhar de casa - a maioria sem as condições adequadas para isso.

“O impacto da dor está mais associado à sua identidade do que à sua etiologia. Cada paciente vivencia a dor de uma forma diferente e um dos grandes desafios para nós, profissionais da área de saúde, e até para o próprio paciente, é graduar essa dor e identificar o impacto na qualidade de vida”.

Possibilidades

O tratamento também é individualizado. Há desde os não invasivos, que incluem fisioterapia, atividade física, acupuntura e psicoterapia, até os mais invasivos. Em geral, os médicos precisam subir uma “escada” na escolha da abordagem terapêutica. “As práticas integrativas estão muito em alta hoje em dia. Hoje acho que o principal exemplo é a acupuntura, que é associada a grande melhora na qualidade de vida de pacientes”, conta a anestesiologista Anita Rocha.

O primeiro degrau são os medicamentos. Quando a dor é nociceptiva - que vem de danos nos tecidos, como a dor muscular - é possível usar anti-inflamatórios ou opioides fracos, como codeína e tramas (tramadol). Se a dor é neuropática (lesão nos nervos), é comum usar anticonvulsionantes e antidepressivos.

A polêmica sobre os opioides, porém, para todos os médicos ouvidos, não se justifica. Nos Estados Unidos, de fato, há uma epidemia de opioides que começou a partir de uma proliferação ainda nos anos 1960, em que esses medicamentos eram apontados como milagrosos. Já no Brasil, de acordo com o médico Bruce Salles Fernandes, porém, o que houve por muito tempo foi uma ‘opiofobia’.

“Tínhamos medo de usar opioides e, durante anos, isso fez com que o tratamento da dor no Brasil não fosse adequado. A maioria dos estudos para dor crônica tem todo esse cuidado com o manejo dos opioides. Lógico que tem risco de dependência, mas estamos muito atentos a isso. Estamos melhorando daquela fase de opiofobia. Nossos pacientes não estão mais subtratados como antes, mas estamos atentos para não chegar a uma crise de ópio”, acrescenta.

O neurologista Felipe Costa, da Unifacs, também reforça que nenhum remédio deve ser demonizado. De acordo com ele, a dependência é a exceção, nunca a maioria dos casos. “Tem que ter muito cuidado, porque é uma classe de remédio excelente. Como qualquer medicação, se bem indicada, é ótima. Não estou dizendo que não tem que ter atenção, mas nos Estados Unidos, a epidemia é realmente muito distante do que tem aqui”.

Em seguida, há os bloqueios - venosos ou locais. A depender do quadro e da trajetória do paciente com outros tratamentos, porém, o bloqueio pode ser uma estratégia mais precoce, na avaliação da médica Anita Rocha. “Na grande maioria das vezes, quando você trabalha com intervenção e realização de bloqueios, a gente recebe o paciente que já passou por vários tratamentos, fez práticas não farmacológicas, fez medicações que não foram efetivas. Nesse contexto, a gente indica o bloqueio mais precocemente”.

A individualização do tratamento deve ser sempre considerada, mesmo quando há abordagens terapêuticas em alta - como é a situação dos canabinoides, como o CDB e o THC. Para a anestesiologista, a cannabis medicinal pode ser usada no controle da dor, mas tem indicações específicas. “Precisa identificar os pacientes que têm perfil e melhor resposta. Na literatura, tem sido identificado para pacientes portadores de dor neurológica, neuropática refratária e com síndrome fibromiálgica”.

Se não houver mudança no quadro, alguns pacientes têm possibilidade de cirurgia. No entanto, segundo o médico intervencionista Bruce Salles Fernandes, os procedimentos cirúrgicos têm diminuído nos últimos anos, devido aos bloqueios menos invasivos. “Na neuralgia do trigêmeo, antes era sinônimo de cirurgia, de abrir a cabeça. As sequelas eram muito grandes. O que fazemos hoje a gente chama de radiofrequência térmica ou compressão por balão”, diz.

Para a anestesiologista Anita Rocha, é fundamental trabalhar com uma equipe multiprofissional de saúde. Esse time deve incluir enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas e outros profissionais que possam acolher o paciente com dor. “A medicina é um contínuo e tem muitas estratégias chegando a cada dia. Conhecimento é algo que se amplifica. A esperança de recuperação do paciente jamais deve ser retirada”.

De acordo com o ortopedista Gustavo Göhringer, médico da Novamed Porto Alegre, o tratamento deve ser multimodal e multidisciplinar. "A abordagem multidisciplinar é imprescindível, haja vista que a dor envolve todos os âmbitos da vida do paciente. Portanto, o apoio psicológico associado a uma boa orientação nutricional e fisioterápica são de suma importância", completa.