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Perla Ribeiro
Agência Einstein
Publicado em 16 de julho de 2025 às 13:13
Estudo revela como o calor e o frio extremos têm matado pessoas silenciosamente — e de forma desigual. Ao analisar dados de mortalidade na Índia entre 2001 e 2019, pesquisadores identificaram que mais de 34 mil pessoas morreram por causas diretamente ligadas ao calor e ao frio intensos. A Índia foi escolhida como objeto de estudo por sua combinação de vulnerabilidades — alta densidade populacional, pobreza, urbanização desordenada e mudanças climáticas aceleradas —, características que ressoam no Brasil. O estudo foi publicado em maio na revista científica Temperature >
Frio
Além do número absoluto de mortes, a pesquisa revela um padrão importante: homens em idade produtiva foram os mais afetados pelo calor extremo, enquanto as mortes por frio foram distribuídas entre os gêneros. A mortalidade foi particularmente alta em estados com menor urbanização e menor gasto público social, sugerindo que infraestrutura urbana e proteção social podem funcionar como escudos contra as variações térmicas. Os autores concluem que grande parte dessas mortes poderia ter sido evitada com estratégias adequadas.>
Mas o alerta vai além da Índia. Ao contrário de outras ameaças causadas pelo clima, como enchentes ou queimadas, os efeitos das temperaturas intensas costumam ser silenciosos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 489 mil pessoas tenham morrido por exposição ao calor em todo o mundo entre 2000 e 2019. Na Europa, região que, em tese, teria mais condições de se proteger, a onda de calor de 2003 foi responsável por mais de 70 mil mortes em três meses.>
Pesquisadora sênior do Centro de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, do Einstein Hospital Israelita, e editora do livro Natureza, Clima e Saúde Pública (2024), a enfermeira Lis Leão concorda com os autores da pesquisa de que essas são mortes que poderiam ser evitadas por condições adequadas e políticas públicas para reduzir a exposição ao calor e ao frio. “Mas a gente sabe que nem toda a população tem a possibilidade de se precaver e de estar numa condição que a proteja das temperaturas extremas”, pondera.>
Preço desigual>
As temperaturas extremas também têm impactado a saúde da população brasileira. Um estudo publicado em 2022 na revista Nature Medicine, com base em dados de 326 cidades de nove países latino-americanos, revela que cerca de 6% de todas as mortes urbanas estão associadas ao calor e ao frio extremos. A pesquisa mostra que, em dias de calor intenso, cada aumento de 1 °C na temperatura ambiente foi associado a mais 5,7% de mortes gerais, e que 10% dos óbitos por causas respiratórias podem ser atribuídos ao frio.>
Outra pesquisa, publicada em dezembro de 2024 na Enviromental Epidemiology, mostra que o Brasil registrou mais de 142 mil mortes relacionadas a temperaturas extremas entre 1997 e 2018. Embora o frio tenha sido responsável pela maior parte desses óbitos (113 mil) — especialmente nas regiões Sul e Sudeste —, o número de mortes associadas ao calor vem crescendo de forma acelerada, especialmente nas regiões Norte e Centro-Oeste.>
O corpo humano tem uma regulação térmica que funciona bem em temperaturas amenas. É no calor e frio extremos que começam as alterações fisiológicas significativas. A exposição excessiva ao calor pode causar insolação, arritmia cardíaca, infarto, edema pulmonar e vasodilatação dos vasos. Também eleva a propensão a insuficiência renal aguda, acidente vascular cerebral (AVC), distúrbios neurológicos e transtornos mentais. Já o frio severo oferece risco cardiovascular e respiratório, e pode aumentar a ocorrência de doenças infecciosas, como as pneumonias.>
Tudo isso afeta principalmente as populações mais vulneráveis: idosos, que vivem muitas vezes sozinhos e sem cuidados; e recém-nascidos, que ainda não desenvolveram a capacidade de regulação térmica. Mas o risco também se intensifica para quem vive ou trabalha nas ruas. >
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) de 2022 apontam que o Brasil tem cerca de 282 mil pessoas em situação de rua, muitas das quais expostas continuamente a variações severas de temperatura, sem abrigo nem acesso regular à água potável. Trabalhadores da construção civil, agricultura, coleta de resíduos e outras atividades ao ar livre também enfrentam jornadas sob sol ou frio intensos — muitas vezes, sem qualquer proteção específica.>
Para Leão, a desigualdade climática se revela nessas situações. “Quem está cuidando desses trabalhadores ou dos moradores de rua? A gente depende de políticas públicas que considerem essas mudanças climáticas para atender melhor esse tipo de população”, afirma.>
Essa lacuna aparece nas ações educativas, muitas vezes desenhadas sem considerar as condições reais de quem mais precisa delas. “A educação em saúde é muito importante, mas não podemos perder de vista qual é a população que estamos orientando”, alerta a pesquisadora do Einstein. “Por exemplo, se eu falo de evitar exposição ao sol nos horários mais quentes, entre 10h e 16h, quem trabalha na rua não tem essa possibilidade. Quais são as outras medidas que podemos trazer?”>
Ela cita iniciativas pontuais que tentam mitigar os riscos, como adaptar jornadas na construção civil ou incentivar a hidratação contínua entre idosos, mais vulneráveis à desidratação. Mas essas ações ainda são isoladas diante da frequência e intensidade crescente dos extremos climáticos. Para a pesquisadora a resposta precisa ser estrutural. “É preciso políticas públicas que consigam melhorar a vida das pessoas para que elas tenham condições de enfrentar essas crises de calor e de frio, que vão ser cada vez mais frequentes”, diz.>
Falta de investimentos e de recursos>
Com as evidências científicas e tragédias reais se acumulando, a atual gestão do poder público brasileiro retomou a agenda em busca de soluções. Em 2023, o governo federal lançou o Plano Clima, uma estratégia interministerial que orienta políticas públicas de mitigação e adaptação às mudanças climáticas até 2035. >
Dentro dessa agenda, o Ministério da Saúde instituiu o Plano Setorial da Saúde para Mitigação e Adaptação à Mudança do Clima, reconhecendo os efeitos diretos do clima sobre a saúde da população e propondo diretrizes para enfrentamento dos riscos. Já no Ministério das Cidades, projetos voltados a cidades e periferias verdes resilientes buscam apoiar municípios vulneráveis com intervenções como arborização urbana e centros de resfriamento.>
Segundo Diego Ricardo Xavier, pesquisador do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz), há ainda um esforço para fortalecer a vigilância epidemiológica com base na integração de dados ambientais e aproximação com instituições como o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que produzem informações essenciais para o desenvolvimento de sistemas de alerta e monitoramento de eventos extremos.>
No plano local, São Paulo mantém a Operação Altas Temperaturas, com tendas de hidratação para pessoas em situação de rua durante os dias mais quentes. Já no Rio de Janeiro, a morte de uma jovem em um show em meio à onda de calor de 2023 escancarou a ausência de ações para enfrentar temperaturas extremas. Após o caso, a cidade instituiu, em 2024, um protocolo que define níveis de calor em escala de 1 a 5. Em fevereiro de 2025, o Rio registrou pela primeira vez o nível 4 (calor extremo prolongado, entre 40° e 44 °C), o que levou as autoridades a emitirem alertas e orientações de saúde pública e a montarem um esquema especial em unidades de saúde para atender casos de hipertermia.>
Nos estados do Sul, ações emergenciais para o frio são acionadas com maior frequência: abrigos temporários, campanhas de arrecadação de agasalhos, distribuição de cobertores e refeições quentes se tornam parte do calendário de inverno em cidades como Curitiba, Porto Alegre e Florianópolis — ainda que com capacidade limitada frente à demanda crescente.>
Apesar dessas iniciativas, Leão pondera que os esforços ainda estão longe de formar uma resposta integrada e eficaz. Parte dessa dificuldade está na própria forma como o clima é percebido: como uma variável externa, difusa e pouco mensurável. “Na verdade, nem os outros determinantes sociais de saúde, que a gente já conhece há muito mais tempo, são tratados adequadamente, como o saneamento básico e o acesso à saúde em si. Problemas conhecidos há mais tempo ainda não estão adequadamente solucionados”, observa.>
Para o pesquisador da Fiocruz, falta ainda mais articulação entre ministérios, já que os impactos das mudanças climáticas sobre a saúde são apenas a ponta final de um problema que começa muito antes, nos modelos de produção, consumo e desenvolvimento econômico. “É um processo transversal e bastante complexo. A gente precisa de intervenções que considerem mudança de cultura mesmo, educação e de modelo econômico”, afirma.>
Na visão da pesquisadora do Einstein, entre as medidas prioritárias está a elaboração de planos de adaptação com foco em saúde, sistemas de alerta precoce acessíveis, centros de resfriamento e hidratação, arborização urbana, capacitação de profissionais e protocolos específicos para o atendimento dos efeitos do estresse térmico. Mas o principal obstáculo é colocar o investimento nisso em pauta. >
“Os planos de adaptação precisam de uma coordenação intersetorial. Precisam de investimento. Na própria COP [Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas], a saúde ainda é um tema que tem muito pouco recurso. O dinheiro está sendo investido em outras áreas relacionadas ao clima, como transição energética, transporte, e não na área da saúde, que corresponde ao destino final das alterações climáticas”, avalia Leão. >
Mesmo com a percepção crescente da população de que o clima está mudando — e afetando diretamente a saúde —, a resposta é lenta. “A gente precisa de maior agilidade para desenhar esses planos de adaptação, para implementá-los e depois ter uma avaliação se deram certo. Mas a gente ainda nem desenhou todos eles, que dirá implementá-los e avaliá-los”, resume Leão.>