3 mil pessoas assistem peça protagonizada por atores negros na sala principal do TCA

Pele Negra, Máscaras Brancas realizou sessão extra, neste domingo, após grande procura

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  • Tailane Muniz

Publicado em 14 de julho de 2019 às 19:37

- Atualizado há um ano

. Crédito: Mauro Akin Nassor/ CORREIO

Uma fábula onde não há espaço para o negro enquanto personagem subalternizado, coexistente num cenário que reflete o impuro, o violento ou o deselegante - como, historicamente, são ambientadas as narrativas, de ficção ou não, sobre o povo preto. Inspirado nas teorias do psiquiatra francês Frantz Omar Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas, espetáculo da Companhia de Teatro da Universidade Federal da Bahia (Ufba), busca o protagonismo ‘nobre’ aos dez atores em cena.

As linhas desta história, de autoria do escritor, ator e apresentador Aldri Anunciação, relatam, em três tempos, a saga de uma família negra que, no século 19, não recorda a própria ancestralidade. Ao menos 3 mil pessoas assistiram à peça, na sala principal do Teatro Castro Alves (TCA), neste domingo (14), em duas sessões, sendo uma extra, realizadas por meio do projeto Domingo no TCA com ingressos a R$1.

Uma terceira sessão quase foi realizada, mas um outro espetáculo já estava agendado para às 17h. O interesse do público pela obra que pauta a descolonização, defende a diretora, Onisajé, é um indício de que, “sim, o povo preto quer se ver em cena”. Procura por espetáculo fez produção abrir sessão extra ainda neste domingo (Foto: Mauro Akin Nassor/ CORREIO) “Foi empoderador ver a comunidade negra vir da periferia ao TCA, onde, sabemos, ainda é um espaço elitista. Importante porque deixa claro que, sim, nós temos público. A comunidade preta, de terreiro, quer, sim, ser vista em teatro, cinema, basta haver políticas públicas que possibilitem esse acesso”, afirma Onisajé, ao comentar que o espetáculo é resultado “das reivindicações do movimento estudantil negro, encabeçado pela Organização Dandara Gusmão”, que, no início do mês de junho, interrompeu a apresentação do espetáculo Sob as Tetas da Loba, no Teatro Martim Gonçalves, no Canela.

O que distancia a narrativa dos dois espetáculos, ambos produzidos pela Cia de Teatro da Ufba, nas palavras da diretora, são a “afirmação e o protagonismo”. “Este é um espetáculo que coloca em espaço de afirmativa o protagonismo, a pessoa negra e sua história. É uma peça antirracista, que não coloca em cena os estereótipos sobre nós, onde todos são protagonistas, e  que aborda os efeitos do racismo na pessoa negra e na pessoa branca”, conta.

Segundo Onisajé, primeira diretora negra à frente de um espetáculo realizado pela Cia da Ufba, em pouco mais de 35 anos, a encenação teve as primeiras apresentações em março deste ano, durante o 3º Fórum Negro de Arte e Cultura da Escola de Teatro da Ufba. Às quase mil pessoas que não conseguiram assistir ao espetáculo neste domingo, uma boa notícia: a peça tem temporada prevista para setembro, no Espaço Cultural da Barroquinha. 

O despertar Acompanhada do namorado e da irmã, a auxiliar de talentos humanos, Taís Santos, 25 anos, contou ao CORREIO que Pele Negra, Máscaras Brancas funcionou, para ela, como o “despertar de uma dúvida”. Taís, que se autodeclara negra, disse que percebeu, entre um ato e outro, que, considerando sua ancestralidade, é cabível a reflexão: “É certo ou errado seguir determinadas religiões? ”, explica.

“Assim, são muitos os questionamentos, mas essa coisa que envolve a religião e ancestralidade, algo que não pensava, foi despertado com a peça, que eu considero muito importante porque aborda a temática de negritude e racismo”, defende.

Taís também destacou o valor do ingresso, a R$ 1, como um facilitador de acesso “aos jovens negros da periferia, que nem sempre têm acesso à cultura”. O espetáculo, reitera a jovem, é uma “boa representação dos jovens negros”. 

Seja por representação ou protagonismo, foi a partir da necessidade de possibilitar um lugar de fala, ao povo negro, que Aldri Anunciação se inspirou e escreveu o texto com um “olhar poético”, aos olhos de Onisajé. Sob tal olhar, Pele Negra, Máscaras Brancas vem a ser o segundo espetáculo escrito, dirigido e encenado por negros da Escola de Teatro, sucedendo a peça Mário Gusmão: Um Anjo Negro, de 2017.  Cena do espetáculo Gusmão: O Anjo Negro e Sua Legião (Foto: Diney Araújo) “Não gosto de chamar de protagonismo porque soa estrelismo, e não é. É assumir a primeira pessoa. São os objetos falados pelo próprio negro e pela própria negra. É sobre a necessidade de narrar minha própria história, porque quando eu era estudante de teatro, via uma série de grandes espetáculos ocidentais, e que não tinham negros em cena, e aí era um paradoxo muito grande, porque eu pensava: estou estudando para quê? ”, recorda o escritor, que iniciou os estudos cênicos na Ufba.

“Acabei formando no Rio de Janeiro, porque fui convidado para escrever um texto para a TV. Esta é minha sexta série encenada e todas elas têm um olhar poético e cuidadoso, que complexifica e individualiza, muito no sentido de buscar os sentimentos dos personagens negros, que é o que faz deles protagonistas. A busca do público por algo assim me deixou muito feliz, foram duas sessões belíssimas”.

Descolonização Os personagens, de acordo com Aldri, têm o mesmo peso - daí o título de protagonista a todos eles. “Negros quase nunca protagonizaram. Ou, quando o faz, é em condição de subalternidade. E isso responde um pouco o nosso histórico colonial, até, o que explica o reflexo na dramaturgia. Mas, e aí, quem altera isso? Nós, nós é quem alteramos isso, porque agora estamos reivindicando o outro lado. É o deslocar a imagem do negro desse lugar impuro e não nobre”, detalha o escritor.

Na leitura de Aldri, a existência de um personagem negro, no teatro, cinema, ou TV, não representa “só a luta pelo racismo”, mas o direito de externar os seus desejos, paixões, crises psicológicas e pensamentos. “O negro também pensa, também tem crises. Fanon não criou uma história. Ele tinha teorias que falam sobre as feridas causadas pelo racismo, e eu me inspiro nisso para a construção dessa fábula”.

No decorrer dos três tempos, os membros da família “negra embranquecida”, reitera Aldri, vão redescobrindo a origem, e se surpreendendo com os próprios traços. “A colonização fez o negro se perder na consciência de si próprio. Os personagens, alguns se surpreendem positivamente, outros nem tanto. A gente está em uma colônia cultural. O que posso dizer é que essa é uma peça que diverte. Tem drama, tem piada, tem música e tem dança”.

Primeira mulher transexual a encenar em um espetáculo da Cia de Teatro, Matheuza Xavier interpreta o próprio Fanon, personagem representado sob a perspectiva do gênero.

“Eu faço a perspectiva do feminino, e Victor Edvani faz o masculino. Onisajé quis quebrar a ideia clássica de representar uma personagem como se fosse a biografia, daí decidiu repartir. As nossas atuações são transcorridas nessa perspectiva”, explica, ao demonstrar felicidade pelo sucesso de público.

“Para a gente foi algo muito importante, porque a ideia é que nossas histórias sejam contadas da melhor forma possível, sob o olhar de pessoas negras. Meu desejo é que a escola de teatro entenda que, para que haja uma reparação, é necessário reconhecer que o racismo existe, sim, e que estamos apenas buscando o caminho da desconstrução, o espetáculo representa isso e eu represento isso”.

Como boa parte das fábulas, Pele Negras, Máscaras Brancas inspira a reflexão do que beira o ensinamento instrutivo, e sugere, no mínimo, a interpretação de dois pensamentos: "Não basta mostrar as máscaras brancas, é preciso retirá-las", e "quanto mais a pele preta, menos máscaras brancas".