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Publicado em 27 de maio de 2021 às 05:22
- Atualizado há 10 meses
Quem escreve, escreve para o tempo presente ou para o tempo futuro? De certo, não escreve para as gerações passadas.
Escrever é sobretudo um ato de olhar para dentro e replicar no mundo afora. Ítalo Calvino em sua obra Por que ler os clássicos fala um pouco disso ao afirmar que “talvez o ideal fosse captar a atualidade como o rumor do lado de fora da janela, que nos adverte dos engarrafamentos do trânsito e das mudanças do tempo, enquanto acompanhamos o discurso dos clássicos, que soa claro e articulado no interior da casa.” O baiano Itamar Vieira Junior projeta o olhar sobre a rua a partir de sua janela e reverbera o que vê na rua, dentro de casa. Refiro-me ao clássico Torto Arado.
A casa de Calvino é o tempo presente, talvez, o futuro que não desejamos. A rua sob o olhar de Itamar se camufla entre passado e presente. O interior da casa é tudo, menos o tempo passado. É o agora. Talvez o futuro que não queríamos (repito). Essa é a potência do clássico. Uma flecha que atravessa geração e espaço. É a sensação de que nos é comum: o clássico fala o óbvio. Fala o que sempre sabíamos, mas não foi dito até então.
Há um ano escrevi sobre a obra atemporal de José Saramago neste espaço. Falava eu do “ensaio sobre a nossa cegueira”, pandemia, ciência, comportamento humano e o papel dos gestores públicos.
Um ano depois, ao reler o referido texto, sinto uma tristeza profunda. É que ele se mantém atual. Longe de mim ter escrito uma passagem atemporal. Minha tristeza decorre das misérias apontadas lá atrás e presentes um ano depois. Quando da publicação daquele artigo, eram três mortes. Hoje, um ano depois, mais de 450 mil vidas perdidas no Brasil em decorrência da covid-19. Dizia eu: “na escassez prevalece, muitas vezes, o egoísmo quando a solidariedade poderia reinar. No caos, não conseguimos ouvir nossos líderes porque a incapacidade de governar prevalece. Na guerra, já não é mais possível falar na preservação dos mais frágeis porque todos nós o somos.”
Que sensação estranha escrever no passado e a escrita ser presente, quase permanente, protraindo-se no tempo que não sabemos onde vai. Não estou falando de nenhum clássico. Estou falando do tempo presente, que se instala para além de nossos olhos e nos pede a ajuda do olhar apoiado em óculos na tentativa em vão de enxergar o que não queríamos.
Diego Pereira é doutorando em Direito Constitucional pela UnB e mestre em Direitos Humanos e Cidadania pela UnB. Procurador Federal (AGU). É professor de Direito e autor do livro Vidas interrompidas pelo mar de lama (Lumen Júris 2020, 2ª Ed.)