A contação de histórias se moderniza e invade o século 21

Narrativas orais se consolidam no mercado literário com presença em festivais e utilização cada vez maior de recursos digitais

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  • Kátia Borges

Publicado em 28 de novembro de 2021 às 11:02

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ismael Silva/divulgação

“Quando um jovem vai em busca da tradição, ele é como o Sankofa, pássaro que voa para o futuro sem tirar os olhos do passado”. Autora da frase, Nanci de Souza, 82, a Ebomi Cici, uma das mais famosas contadoras de histórias do país, diz que não vê razão para estranheza quando o assunto é a disseminação significativa das narrativas orais no século 21, muito ao contrário.“O saber sempre esteve contido nas histórias cantadas, dançadas, narradas. Os modernos chamam de audiovisual, mas é ancestral”, explica dona Cici.No Facebook, um único grupo (há vários) dedicado ao tema já reúne mais de doze mil participantes. O mercado literário se abre à edição de livros e as rodas de histórias se tornaram comuns em festas e feiras. Na Flipelô, a contação ganhou uma manhã inteira para si, no último dia 19, reunindo autores na Praça Pastores da Noite. Criadora da Companhia Teatral Teatro Griô (ao lado de Rafael Morais), Tânia Soares faz coro com Cici e lembra que foi a narrativa oral que inaugurou a escrita, e não o contrário.

Mas, por que prezamos tanto hoje escutar ao vivo ou ler essas narrativas inspiradas em lendas ancestrais? Para Tânia, que é atriz, diretora teatral e ilustradora, a oralidade costuma entrar em nossas vidas já na infância e nos acompanhar para sempre. Em sua dissertação de mestrado, pela Escola de Dança da UFBA, ela recorda como os pregões dos vendedores de rua a despertaram para o assunto, que se tornaria o eixo de suas pesquisas artísticas e de sua atuação nos palcos, na juventude e na vida adulta. Tânia Soares ilustra sob pseudônimo Amarela, como assina no livro  As Aventuras do Cágado Ajapá, o segundo do Grupo Griô (Gabriel Dias/divulgação)  Sabedoria iorubá Junto com o ator e diretor Rafael Morais, Tânia participa, neste sábado, às 19h, do lançamento virtual do segundo livro do Griô, As Aventuras do Cágado Ajapá, que será transmitida ao vivo no canal do grupo no Youtube. Dando sequência a uma parceria iniciada há 23 anos, ele escreveu o texto, inspirado nas culturas Iorubana e indígena, e ela produziu as ilustrações, sob o pseudônimo Amarela. O primeiro título da companhia teatral, A Galinha Conquém foi publicado em 2017. Cici assina o posfácio.

A Ebomi diz ter se reconhecido em cada história do novo livro do Griô, com quem já dividiu o palco algumas vezes, como se olhasse para uma pessoa viva.“O Ajapá é um animal sagrado em minha cultura, é aquele que, dentro das oferendas de orixá, simbolizam a calma. Tranquilamente, sem precisar correr, e com sabedoria, ele alcança grandes vitórias. É um animal símbolo da não-violência, ligado ao culto de Xangô, o orixá da justiça. Nos tira de muitos emaranhados da vida”, explica a EbomiCiente desses muitos emaranhados da vida e da importância em desatar todos os nós, Cici diz aplaudir a modernização da contação de histórias que vem sendo feita pelos jovens entusiastas do gênero, muito embora exista (e resista) uma tradição bem mais profunda e que se resguarda, aquela que pertence à tradição oral do candomblé. São esses mistérios sagrados, incluindo alguns sobre o significado do Ajapá, que não são revelados. “Há uma força muito maior, que vai além”, observa.

Narradores digitais Entre os jovens narradores, Raphael Ramos, 27, que esteve entre os convidados da roda de contação da Flipelô deste ano, diz que sua trajetória é inspirada por Ebomi Cici e pelo encanto provocado por suas apresentações presenciais. “Ali, de fato, me sinto no modo mais tradicional. É o contador na sua cadeira, os ouvintes no tapete, as histórias sobre costumes e tradições de um povo, e a voz dessa senhora linda que, hoje, também migra o seu narrar para um ambiente mais contemporâneo”, pondera. O escritor e contador de histórias Raphael Ramos esteve entre os contadores de histórias da Flipelô desse ano (divulgação) O escritor baiano se refere aos vídeos da Ebomi, que se multiplicam cada vez mais no Youtube e que contabilizam milhares de views em todo o país. Em um deles, publicado em 2019, ela conversa com o ator (e também autor) Lázaro Ramos, numa gravação para o programa Espelho (exibido pelo Canal Brasil), com visualização de mais de 90 mil pessoas. Além da proximidade com o público, Raphael admite que também deseja alcançar leitores digitais e, para isso, explora os recursos eletrônicos.

As narrativas em si, ele faz questão de frisar, seguem inspiradas nas lendas orais e na transmissão do conhecimento, seja este mais contemporâneo ou ancestral, mas podem agora conquistar um novo público, bem mais amplo, em suas versões digitais.“Hoje, vários narradores jovens, como eu, conseguem conciliar essas duas ferramentas de contação, ao construir suas histórias com recursos tecnológicos, e, ainda assim, manter uma comunicação direta com as pessoas”, explica. De mãe para filha Na família Galrão, a arte da contação atravessa gerações, bem como a paixão pelos livros. Mãe e filha, Iray e Martha se dedicam à literatura. Aos 80, Iray diz que o contato com as narrativas orais veio de uma infância sem TV, celulares ou redes sociais.“Cresci encantada, enfeitiçada pelas histórias contadas pelos mais velhos, não só os da minha família, mas também os da comunidade de Ubaíra, cidade onde nasci, quando era comum sentarmos à noite nos passeios para ouvir nossos avós”, diz. Iray Galrão escreveu vários livros e, apesar da tecnologia, ainda defende a contação tradicional, “olho no olho” (Marina Silva/divulgação) Essa vivência da oralidade fez de Iray professora primária; em seguida, a levou ao domínio do yorubá; na sequência, a escrever seus primeiros contos e a publicar vários livros e, também, à militância cultural, atuando na defesa da difusão da literatura afro-brasileira.“Apesar de toda a tecnologia, que bom que as histórias estão ganhando cada vez mais força e adeptos. Nada substitui o encanto de se contar presencialmente, olhando o brilho, o encanto, as descobertas nos olhos das crianças”, diz Iray.Não é que a escritora seja inimiga da tecnologia. Bem ao contrário. Afinal, a virtualidade tem sido essencial na disseminação da tradição oral. Mas é “cara a cara”, para ela, que os contadores podem lidar melhor com as perguntas desconcertantes e espontâneas dos seus pequenos ouvintes. E claro que Martha, 53, filha de Iray, foi um deles. “Ela sempre leu e ouviu muitas histórias. Acredito que isso aguçou a sua sensibilidade, transformando-a numa maravilhosa poeta”, diz.

Também professora, além de poeta, Martha lançou este ano o livro Maturando Pernas em Rabo de Peixe (editora Segundo Selo). Para ela, a influência de sua mãe e as histórias de Ubaíra somaram-se às de seu pai que, embora não tenha sido escritor, era um exímio prosador.“Acho que nunca deixaremos de ler e contar histórias, porque é o que nos torna humanos e permite compartilhar, ruminar, compreender melhor a nós mesmos, além de criar laços que só são possíveis através das narrativas”, opina Martha.Interatividade e tradição oral Para além dos sites e das páginas mantidos por grupos ativos nas redes sociais, e mesmo do contato direto produzido nas rodas presenciais de contação de histórias, na prática, os recursos eletrônicos ampliam em muito o potencial da leitura no impresso, conectando o livro físico ao universo digital, sem abrir mão do resgate da tradição. No já citado As Aventuras do Cágado Ajapá, por exemplo, o uso de QR Codes, espalhados em suas páginas, disponibiliza o acesso a diversos conteúdos interativos.

Cada um desses códigos eletrônicos bidimensionais (que podem ser lidos/escaneados por meio de câmeras fotográficas de smartphones comuns) redireciona os leitores para novos textos, imagens, áudios e vídeos ou mesmo endereços digitais. Assim, a narrativa impressa se expande, passando a incluir informações literárias ou extraliterárias, seja acrescentando elementos à trama ou trazendo dados sobre o autor ou autores, além de notícias relacionadas à temática central da história.

No livro infantojuvenil produzido pelo Teatro Griô, esse recurso foi colocado a serviço da narrativa oral. Os QR Codes, que podem ser atualizados com novos conteúdos sempre que necessário, tanto apresentam a história da companhia teatral e sua agenda de eventos como trazem músicas, vídeos, jogos, áudios e ilustrações produzidos pelo grupo e relacionados diretamente às aventuras de Ajapá, o sagaz cágado sagrado que representa a sabedoria que, sem pressa, sempre vence.