'A Corrupio foi uma aventura', afirma Arlete Soares, que anunciou fim da editora

Fotógrafa relembra histórias com com Pierre Verger, Caymmi e outros grandes artistas da Bahia

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 9 de janeiro de 2021 às 12:01

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto:divulgação

Arlete Soares é o cão! Assim ela foi definida em uma frase por ninguém menos que Jorge Amado, impressionado com a inquietude da amiga e sua capacidade de realizar projetos, acumular funções, "fazer coisas que Deus duvida". Aliás, foi o próprio Jorge que a apresentou a Pierre Verger, em Paris. Aquele encontro seria o embrião da editora Corrupio. Sim, porque a Corrupio foi criada para publicar Verger.

Pensado em 1979 e lançado em 1980, Retratos da Bahia, o primeiro livro - com fotografias feitas por Verger no período de 1946-1959 - mereceu citação de Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil. A Corrupio não parou mais! Nos últimos quase 41 anos, se tornou referência de publicações que marcaram a história da cultura da Bahia. Nomes como Vivaldo da Costa Lima, Mestre Didi, Antônio Risério, Zélia Gattai, Carybé, J. Cunha e Mabel Velloso preenchem seu catálogo. Em 2018, a Corrupio foi homenageada na Flip, Festa literária de Paraty.

Depois de tanto tempo editando a Bahia, Arlete e a sócia Rina Angulo, consideraram que era hora de parar. Mas a fotógrafa vai continuar se aventurando em projetos, igualzinho quando fez uma viagem de Kombi de Paris ao Tibet com quatro amigas. "A vida é se aventurar". Nada tira seu otimismo, inclusive quando se trata do futuro das editoras e dos livros. "O futuro é dos livros artesanais". Nesta entrevista ao CORREIO, Arlete relembra apenas uma pequena parte de sua bela trajetória, além de histórias com Verger, Caymmi e até Mick Jager.  

O que mais marcou você nesses 41 anos de Corrupio?

Nós não éramos só uma editora, nós éramos um ponto cultural, um coletivo de arte. A primeira sede ficava a 150 metros do Porto da Barra. Tinha um pátio na frente e ali acontecia coisas fantásticas. Exposições de fotografia, desfiles de moda. Uma vez exibimos 32 horas de filme gravadas por Pierre Verger em Salvador, em Paris e na África. Era uma época bem diferente. Muitos artistas frequentavam. De Neguinho do Samba a Moa do Catendê. De Verger a Cid Teixeira. Esse pessoal chegava a deixar os documentos com a gente para ir dar um mergulho no Porto da Barra. Pátio da Corrupio vivia movimentado (Foto: Arlete Soares / Divulgação) Graças à Corrupio você fez amizade com artistas de diversas gerações, né?  

A Corrupio promovia o encontro dos cabeças brancas com os jovens. Nós éramos amigos de Carybé, do Jorge, da Zélia, de Mestre Didi, de Vivaldo (da Costa Lima), de Caymmi. E tinha a moçada boa: (Antônio) Risério, Caetano, Gil. Os jovens queriam ouvir os cabeças brancas e os cabeças brancas queriam ouvir os jovens. Era uma troca muito interessante. A Corrupio foi uma coisa muito forte! Os amigos Jorge Amado e Pierre Verger: clique histórico de Arlete (Foto: Arlete Soares / Divulgação) Verger foi o princípio de tudo, né? Como era Verger?

Verger era um cara educadíssimo e extremamente observador. No meio de muita gente Verger era mais na dele. Mas na intimidade dos amigos era muito gaiato. Tinha um humor fantástico! Nós éramos deslumbrados pelo trabalho dele. Todo mundo queria levar Verger pra lá e para cá. Todo mundo queria dar carona pra Verger.   Registro ao lado de Verger (Foto: Acervo Arlete Soares) Como começou a amizade de vocês? Aliás, Verger foi mesmo o grande motivo da existência da Corrupio?

Foi! A Corrupio foi criada para publicar a obra de Verger porque não existia nada publicado no Brasil. Eu estava em Paris fazendo doutorado e Jorge Amado me convidou para conhecer Verger, pra tomar um café com Verger. Mantivemos contato e começou a amizade. Na Nigéria, quando fui visita-lo, prometi a Verger que iria procurar uma editora para publicar algo dele no Brasil. Dois anos depois Verger voltou definitivamente à Bahia e tava na expectativa de que eu procurasse alguém para edita-lo. Fui a São Paulo e ao Rio e ninguém topou. Teve um cara de uma editora que falou: “um livro com tantos negros? Não vai vender”. Voltei pra casa humilhada e sem saber o que dizer a Verger. Cheguei a mentir pra ele dizendo que a resposta iria demorar.

Mas aí veio a Corrupio?

Eu pensei: “vou dar um jeito de cumprir minha promessa”. Publicamos Retratos da Bahia, quando tivemos que escolher 256 fotos entre 800 imagens maravilhosas. Um trabalho doloroso. Mas minha ideia era fazer somente um livro. Publicaria e voltaria para minha vida de fotógrafa. Um livro virou muitos. Depois criamos a Fundação Pierre Verger. Tinha que preservar aquele material. Tenho muito orgulho da Corrupio ter contribuído com isso.  

Qual foi a repercussão desses livros de Verger na época?  

Ah, foi imensa! O primeiro livro, Retratos da Bahia, saiu logo na coluna de Carlos Drummond de Andrade. Deu uma nota no Jornal do Brasil: “bilhete a Pierre Verger”. Orixás foi o mesmo sucesso. A gente recebia cartas dos leitores. Não tinha Internet e nem redes sociais, né? As pessoas de religiões de matriz africana procuravam a gente e queriam dividir o valor do livro em várias vezes. A gente aí dava o livro. Eu não conheço uma editora que deu tanto livro quanto a Corrupio. Como vou negar um Orixás?  Muitas vezes a pessoa ainda saía com o livro assinado porque Verger quase sempre tava lá e autografava. Também fizemos cartões postais com as fotos de Verger que fizeram muito sucesso. Uma série com festas populares, pesca do xaréu, igrejas. Nota de Drummond no Jornal do Brasil sobre lançamento de Retratos da Bahia (Foto: Reprodução Acervo Arlete Soares) Você citaria cinco livros cânones da Corrupio? O Top 5!

Difícil. Cada um cumpriu a sua função, sabe? Todos eles permeiam a nossa história. A Corrupio tem um catálogo pequeno, mas muito importante. Sou uma leitora voraz de todos os autores. Por isso, não deixaria nenhum deles de fora da minha estante.  

Você viveu uma Bahia que não existe mais. Você fica comparando aquela Bahia do passado com a de hoje?

Eu sou feliz porque nasci aqui. Aquela Bahia era outra Bahia, mas não tenho essa mania de olhar para trás o tempo inteiro. Não! Gosto de pensar que a geração que nasceu na década de 40, por exemplo, deu excelentes frutos: Caetano, Chico, Gil. Chico é um pouco baiano, né? Aí tem Glauber, João Ubaldo. Mas os que vieram antes de todos esses também eram incríveis. E os que vieram depois também. E a Bahia continua produzindo grandes nomes.

Era o que você sonhava para a sua vida? Vivenciar de perto a vida cultural da cidade?

Olha, eu sempre gostei de aventura. A vida é se aventurar. A Corrupio foi uma aventura. Eu não tinha dinheiro, eu era uma simples fotógrafa. Antes nunca tinha imaginado virar editora, de ter uma casa para editar livros, sabe?   Pátio da antiga Corrupio tinha livraria (Foto: Acervo Arlete Soares) E a viagem de Kombi que você fez de Paris para o Nepal com três amigas? Ali, sim, foi uma grande aventura!

Para as pessoas ligadas à contracultura da época, a Índia era quase que uma obsessão. Eu tava nos Estados Unidos e fui muito influenciada por essas ideias, pelo Woodstock, os Beatles, Bob Marley e a busca pela espiritualidade. No Brasil tinha a Tropicália. Tive a ideia de ir para a Índia, convoquei três amigas e fomos. Ao chegar no Afeganistão, a aduana perguntou: “onde está o homem”? Não acreditavam que quatro mulheres estivessem atravessando a fronteira. Ali foi uma grande aventura! Fui uma pessoa para essa viagem e voltei outra. De Paris ao Nepal de Kombi (Foto: Arlete Soares / Divulgação) Como assim?

Ah, voltei com uma outra visão sobre a velhice, por exemplo. Na Índia as pessoas respeitam muito os velhos. Via aqueles velhinhos de barba branca e todo mundo respeitando. Aquilo me tocou muito.  

Que história é essa que vocês não bebiam água na viagem? Era só chá?

A água tinha que ser fervida, né? Era uma água escura e por isso tinha que ferver. Aí nós tomávamos muito chá. Nós éramos macrobióticas. Fazia parte da contracultura. Fizemos um curso com um papa da macrobiótica na viagem. Isso foi importantíssimo porque muita gente ficava doente. São experiências que mudam a forma de encarar a vida.  

Sei que você também tem boas histórias com Caymmi. É verdade que você tava quando ele se encontrou com Mick Jager em Paris?

Eu era muito amiga da família Caymmi. Eles foram para Nice, na França, e acabei convidando Caymmi para ir à Paris ficar no apartamento de uma amiga. Eu tinha um outro amigo, o Augusto, que tinha um restaurante muito famoso lá. Liguei para ele e disse: “Augusto, vou jantar essa noite aí”. Ele respondeu: “Arlete, hoje não dá. O restaurante tá fechado para um aniversário”. Eu fiquei curiosa: “Aniversário de quem, Augusto?”. Nós éramos muito amigos e ele entregou: “Não diga pra ninguém, mas é aniversário de Mick Jagger”. Eu disse: “agora que eu vou”. Ele pediu: “pelo amor de Deus, Arlete, só não traga a máquina fotográfica”. Coloquei a máquina na bolsa. Em algum momento Mick Jagger veio à nossa mesa. Pedi pra fazer uma foto e ele consentiu. Fiz várias fotos enquanto Augusto ria com os olhos arregalados. Mick Jagger perguntou de Caetano Veloso e eu atualizei ele. No dia seguinte souberam que eu tinha feito fotos e me ofereceram dinheiro. Pra mim na época era uma nota. Recusei o dinheiro e dei as fotos.

Igual à foto clássica de Caetano com a Coca-Cola?  

Sim. Uma foto que fiz de Caetano na janela, em Buraquinho. Essa foto virou um pôster. Parece que a Coca-Cola tava fazendo 40 anos no Brasil que coincidia com o aniversário de Caetano. Me ofereceram dinheiro, mas eu recusei. Caetano e a garrafa de Coca-Cola (Foto: Arlete Soares / Divulgação) E seu trabalho como fotógrafa? O que você acha que tem de fundamental?

O olhar para o registro, para as coisas que acontecem em volta. Eu não fotografo temas. Nunca tive temas: “vou fotografar a natureza”, “vou fotografar portas e janelas”. Eu prefiro diversificar.

É a esse acervo que você vai se dedicar agora?

Tô com um grupo de três pessoas para isso. Goli Guerreiro, Lua Lessa e Ana Carolina Gonçalves. Vamos nos debruçar no meu acervo. Tá tudo preservado, mas não tem nem 30% digitalizado. Tenho muita alegria, a mesma lá do início, mas a garra fica por conta delas.

Mas tem também o Pátio Corrupio, uma tentativa de reviver aquele ponto cultural que existia no Porto?

Sim, quando a pandemia acabar, vamos tocar o pátio, com realização de exposições, rodas de conversa e lançamentos literários.

Como você vê o futuro dos livros e das editoras?

O futuro é dos livros artesanais. Nunca vai deixar de existir o livro físico. Vai voltar um pouco a coisa deliciosa da criação. O livro será artesanal. Ainda produzimos muitos talentos em todo o canto. A Bahia produz muito bons escritores e eles vão continuar a nos brindar com bons livros.