A debandada dos caranguejos

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  • Nelson Cadena

Publicado em 23 de dezembro de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Dona Domingas foi a primeira a alertar os vizinhos. Vira um buraco no Largo da Madragoa, segundo ela, de tamanho incomum – parecia aumentar a cada minuto – de onde brotavam caranguejos, debandando pela praça, outros procurando o caminho da praia. Deve ser os buracos que o Chico Magalhães fez na Festa do Bonfim, ponderou Seu Miguel; o músico costumava montar toldo com paus de bambu para proteger o piano de cauda, do sol e chuva, durante as noites da novena, quando interpretava modinhas de época.

Não é não, insistiu Dona Domingas, o toldo fica embaixo do tamarineiro, o buraco dos caranguejos, no meio do Largo e é enorme, vá lá assuntar para não dizer que estou inventando. Seu Miguel creditou os exageros da velha aos achaques da idade, pelo sim pelo não, foi conferir de perto. Nem precisou chegar na Madragoa, quando avistou os crustáceos, centenas deles, subindo a Ladeira do Bonfim, outros invadindo o sobrado da esquina para beliscar as mangas caídas, no chão.

Mais adiante enxergou o inspetor que esbaforido, sem descer do cavalo, informou que tinha visto milhares de caranguejos, na sua percepção embasada pelo pânico, no Largo de Roma e soubera pelo tenente Ariel que nas dunas do Rio Lucaia, no Rio Vermelho, os veranistas teriam se espantado com o assalto dos crustáceos. Seu Miguel lembrou que era hora da vazante, evocou a cantiga “Caranguejo não é peixe/ Caranguejo peixe é/ Caranguejo só é peixe/ Na vazante da maré”. Repudiou a inoportuna lembrança, mais inoportuna ainda quando se deu conta que um caranguejo se enrolara na sua alpargata, enquanto ouvia o relato do policial.

Rumo à Madragoa e sem ainda tomar pé da situação, já prevendo o pior, seu Miguel imaginou tomar providências imediatas, não dava para confiar na presteza das autoridades, além disso a sua liderança junto aos pescadores não lhe permitia vacilos de qualquer ordem numa emergência como essa. Se esquivando dos crustáceos que insistiam em se pendurar na sandália de couro, ouviu de longe os gritos de Dona Raimunda; acudiu a cunhada que acordara com os caranguejos na cozinha, dezenas deles escalando o fogão de lenha e as paredes de taipa – solapando a sua autoridade de eximia quituteira – se acondicionando nos caldeirões de ferro e no prato da moringa, que falta de respeito!

Após aconselhar a irmã de sua mulher a aguardar a maré de enchente, quando o mundo voltaria a ser regido pela ordem natural das coisas, seu Miguel chegou no Largo; se espantou com a algaravia de mulheres, o incessante latido dos cachorros, a cena das crianças penduradas nas árvores, o ladainha do vigário espargindo agua benta e ao conferir o bueiro se deu conta da previsibilidade de Dona Domingas: o buraco se alargava com a pressão dos caranguejos que brotavam da terra, como formigas, se espalhando pelo chão batido.

A culpa é das autoridades que outrora mandaram aterrar o manguezal para fazer a praça, ouviu de um antigo morador que sabia das coisas. Meio-dia, o Intendente alertado pela polícia, chegou no local; apresado desceu da carroça, logo sentiu a cambada de caranguejos se enrolando nos pés, ensaiou alguns chutes, não deu certo. Na tentativa de se livrar dos bichos escorregou e caiu. Os crustáceos montaram sobre a casaca de linho, o chapéu e os sapatos e puxaram; pelas calças chegaram nas ceroulas e cobrindo todo o corpo o arrastaram, para lá e para cá, em zig zag, para cá e para lá, até o buraco.

Dona Domingas contou, anos depois aos cronistas, que enquanto o bueiro engolia o chefe do executivo municipal e se estreitava, até fechar de vez, o último caranguejo a entrar largara do lado de fora a lapela da casaca; grudada uma medalha de herói da pátria.