A distopia ficou próxima da realidade: Namíbia, Não! volta aos palcos

Montagem com Ícaro Silva estreia temporada comemorativa de dez anos nesta sexta (5), na Sala do Coro do TCA

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  • Vinicius Nascimento

Publicado em 4 de agosto de 2022 às 05:41

. Crédito: Foto: Thiago Rosarii

Quando Aldri Anunciação pegou a caneta para escrever as primeiras linhas do texto de Namíbia, Não! o Brasil era completamente diferente, ainda mais quando se leva em consideração a fatia mais pobre do país. Em 2009, a desigualdade de distribuição de renda no país acumulava queda de 5,6% em cinco anos e a renda média real subira 28%. Os números são do comunicado Mudanças Recentes na Pobreza Brasileira, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O cenário em 2022 é bem diferente e a pobreza atingiu números recordes com 47,3 milhões de brasileiros terminando o último ano na pobreza, de acordo com o levantamento realizado pelo Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS). Uma realidade sofrida na pele pela  população negra, retratada no texto, vencedor do Prêmio Jabuti em 2012, e que marcou a estreia de Lázaro Ramos na direção de um espetáculo adulto.  

A distopia se aproximou da realidade e é assim que o espetáculo volta a ser apresentado em Salvador, onde começou sua jornada em 2011. Namíbia, Não! entra em cartaz nesta sexta (5), às 20h, na Sala do Coro do Teatro Castro Alves, onde segue em cartaz até dia 28. Os ingressos para a estreia estão esgotados.

Eu tenho dois sentimentos em relação ao retorno da peça. Primeiro, uma alegria profunda por voltar com 99% da equipe, mesma equipe de som, vídeo, áudio, direção de assistência, direção do palco, de encenação. Esse reencontro é muito bonito e mostra que a narrativa que pensamos encontrou seu público”, explica Aldri Anunciação, que também atua na montagem. 

O outro sentimento, no entanto, é de preocupação pelo caráter até premonitório que a peça, que inspirou o filme Medida Provisória, também dirigido por Lázaro, tomou ao longo de 10 anos. Veja só: em uma das cenas, o personagem André grita que não consegue respirar por onze vezes. A mesma frase dita por George Floyd, em 2020, quando foi morto por um policial americano. A frase foi o estopim do movimento Black Lives Matter.“Esse aspecto visionário que as vezes a arte adquire falando da negritude mundial me deixa infeliz. Saber que após onze anos a gente precisa falar sobre isso, a gente fica sem conseguir respirar, há uma morte negra a cada 23 minutos”, diz Aldri.Aldri Anunciação divide o protagonismo do espetáculo com o ator paulista Ícaro Silva, que vive atualmente o vilão Leonardo da novela Cara e Coragem, da TV Globo. Na primeira versão, o ator Flávio Bauraque viveu o papel. Filho de baiano, Ícaro diz que é uma alegria e uma responsabilidade encenar um texto negro aqui. “Salvador é a cidade mais importante pra negritude no Brasil”, afirma.

Texto mítico Ícaro nunca tinha conseguido assistir  Namíbia, Não!. Por isso e por tudo que ouviu falar sobre a peça, afirma que ela tinha um caráter quase mítico em sua vida. “Me parece o fechamento desta mitologia  eu alcançar este lugar de poder falar no teatro sobre questões que me atravessam, com um texto premiado e que virou filme. Espero que o público se divirta muito também, pois, por mais que o texto seja denso, ele é pra causar reflexão com diversão”, observa.      

A peça narra a história de André e Antônio, advogados que são surpreendidos por uma Medida Provisória do Governo brasileiro, obrigando a todos os cidadãos com características que indiquem uma ascendência africana a regressarem a seus pretensos países de origem. Todos devem ser capturados e devolvidos às nações da África, sob o pretexto de “corrigir” o erro histórico da escravização dos africanos nas terras brasileiras. A partir daí, a narrativa se desenrola, contando a história de um Brasil do futuro, numa realidade distópica - já não tão distópica assim.

Ao longo de 10 anos, a peça acumula premiações pelo texto e levou cerca de um milhão de pessoas para os teatros em todo o Brasil. A nova temporada conta com audiodescrição e libras, promovendo maior acessibilidade. “Hoje temos uma população mais pressionada socialmente e o contexto faz com que a peça adquira um ar menos distópico e ganhe ar de crítica social realista. Em resumo, parece que o texto não muda, mesmo passando pela questão cinematográfica. Muda o contexto mundial e o olhar do público”, resume Aldri.

FICHA

Espetáculo: Namíbia, Não!

Estreia: sexta (5)

Onde: Sala do Coro do TCA

Quando: Sextas (20h), sábados (17h e 20h) e domingos (17h), até dia 28

Ingressos: R$ 50 |R$ 25. Venda no Sympla.