A erosão inevitável das décadas

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  • Paulo Sales

Publicado em 27 de setembro de 2021 às 05:03

- Atualizado há um ano

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Não lembro quem disse que o tempo é a matéria-prima da qual somos feitos, mas concordo com ele. Os sulcos, sinais e cabelos brancos que ostentamos nascem da exposição contínua às intempéries, assim como as rochas são esculpidas pela ação do vento, do sol e das chuvas. Com uma diferença: em nós, as intempéries são internas. Brotam de dentro para fora, e com o passar dos anos as erosões em nossa mente se propagam como metástases, atingindo o invólucro.

Isso é inevitável, embora varie de pessoa para pessoa. Por isso, muitas vezes não nos reconhecemos nas fotos antigas, naqueles sorrisos de uma malícia inocente ou no olhar sério que valida uma tomada de posição. Folheio meu álbum de viagens de trinta anos atrás e minhas lembranças me levam até lá, àqueles momentos que guardei para a posteridade – uma posteridade fugaz, diga-se.

Onde está o homem que sou hoje naquele rapaz de olhar impetuoso, franco e ligeiramente arrogante, que escrevia poemas e romances hoje tão distantes de mim? Não está mais em lugar algum, embora um seja fruto do outro, e eu admire profundamente aquele jovem que me olha como se esperasse ansiosamente esse encontro com o futuro.

Então me dou conta de que o tempo é mesmo uma matéria-prima aquosa, fluida, que se adapta progressivamente ao manuseio do destino. São nossas escolhas, mas principalmente o nosso embate contra o acaso, que nos transportam para o presente. Se não ficamos pelo caminho, tragados por um acidente ou devastados por uma doença, devemos isso a eles, assim como devemos as frustrações, perdas e pequenas vitórias que a vida nos oferece.

Sendo assim, o que restará de mim, desse eu que escreve este texto, daqui a vinte anos? Claro que somos basicamente um acúmulo de experiências que se acomodam em camadas sobrepostas, mas como esses questionamentos que faço agora soarão para o septuagenário que dividirá comigo a mesma carapaça?

Outro dia encontrei por acaso um poeminha escrito em 1991, durante uma viagem a Recife. Tinha então 21 anos e já ali demonstrava uma inevitável propensão à nostalgia, algo inusitado para alguém tão jovem. Talvez aqueles versos fossem um recado ao homem de 51 anos, fios brancos em profusão dominando o cabelo e a barba, que agora bebe um vinho no aconchego de sua casa.

Há nesses versos um idealismo enviesado, ou ao menos um esboço de um tempo feliz que curiosamente pertence ao passado, e não ao futuro, como se o autor de certa forma enxergasse o outrora, e não o porvir. Talvez já antevisse naquela época a incômoda capacidade que o tempo tem de se converter em cinzas. Provavelmente sabia que o seu poema ficaria esquecido num armário até ser resgatado por acaso por seu autor, ou pela pessoa em que o seu autor se transformou, tão diferente e ao mesmo tempo tão íntima dele, como um irmão mais velho ou um velho amigo.

Lembro de ficar intrigado quando ouvia minha mãe relembrar da sua infância e arrematar com um “parece que foi ontem”. Para mim, a sua aurora tinha a distância de uma eternidade, se é que podemos medir dessa forma o tempo ao qual não pertencemos. Hoje, a minha aurora é também medida em eternidades, embora alguns fatos permaneçam vívidos como um tropeção.

Pergunto a mim mesmo onde foram parar meus 15 anos, meus 18 anos, meus 21 anos sem portas ou segredos, abarrotados de poemas, viagens e amores que pareciam imortais. Estão aqui, em algum canto obscuro, ajudando a sustentar a essência do que sou. Um emaranhado de lembranças que me impelem inevitavelmente para o futuro