A Flip de Diamant, Bishop e Cabral de Melo Neto

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  • Da Redação

Publicado em 30 de dezembro de 2019 às 12:30

- Atualizado há um ano

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A emenda saiu pior que o soneto, diria Acácio. Acaciano que sou, às vezes, sou obrigado a concordar com o nobre Conselheiro. A defesa da curadora da Flip de 2020 para a escolha do nome do homenageado do ano (a poeta norte-americana Elizabeth Bishop) é ainda mais obtusa que a escolha. E como uma andorinha só não faz verão, a curadora, Fernanda Diamant, também editora da revista Quatro Cinco Um, a revista dos livros, subitamente se viu acompanhada de palpiteiros que não economizaram em indecorosa ignorância, apresentando um show (atentem para o termo “show”: não usei “espetáculo”, como usaria o brasileiríssimo Ariano Suassuna, porque não sou o Policarpo Quaresma, porque não sou xenófobo) de pataquadas, pensamento rasteiro e senso comum. 

Bem, o parágrafo acima, assim como os de baixo, se referem a texto publicado na Folha de São Paulo no dia 28 de novembro de 2019 com o título “Não vejo razão para mudar, diz curadora da Flip”. Assinam a reportagem os jornalistas Bruno Molinero e Manuela Smith. 

Foi lá que li as palavras de Diamant a respeito do posicionamento da poeta norte-americana favorável ao golpe militar de 1964 no Brasil:

“A maioria desses comentários foi feita em cartas escritas de forma íntima para amigos. Eles têm uma longa história de idas e vindas e um acompanhamento da situação política do Brasil ao longo dos anos”. E continuou: “falta sutileza de entender o contexto, quem ela era, como vivia, os eventos que foram acontecendo ao longo dos anos”.

Falta entender o contexto? O mesmo disse a defesa de Eichmann em seu histórico julgamento, muito bem registrado por Hannah Arendt, uma judia que não fazia concessões a judeus. E eu diria que falta a “sutileza”, em Diamant, de entender, ou lembrar, que há contexto para absolutamente tudo, e nem precisamos resgatar Gasset: circunstâncias movem moinhos. Cá estou novamente acaciano. É preciso mesmo lembrar que outras tantas pessoas viveram as mesmas circunstâncias vividas por Bishop e não apoiaram o golpe? Mas, das palavras de Diamant, talvez o que mais me espantou foi a alusão às cartas, como se o fato de o pensamento de Bishop a respeito da ditadura militar no Brasil não ter sido publicado diminuísse algo de sua grave estupidez. Pelo contrário! As cartas íntimas, segundo Diamant, demonstram que, além de fascista, a poeta era covarde, expunha suas opiniões obscurantistas entre os mais próximos, apenas, em conversas de alcova. Ademais, cartas, cartas, cartas… Como soubemos nós, pobres diabos, leitores ingênuos ou desavisados de Monteiro Lobato, que o autor de “Reinações de Narizinho” era eugenista? Bom, posso dizer por mim: fiquei sabendo da personalidade execrável de Lobato e de seu plano de uma eugenia brasileira lendo as cartas que ele escrevera e enviara a Godofredo Rangel, nas quais é possível encontrar trechos do tipo: “Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estávamos livres da peste da Imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidos porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”. Entre idas e vindas Lobato foi exsudando entre os chegados todo seu ódio ao negro e à mestiçagem brasileira em geral. Aliás, é nas cartas, por motivos óbvios, que um escritor é mais ele que qualquer personagem seu ou mesmo seu alter ego.

Na mesma matéria publicada pela Folha li que “ela (Bishop) foi introduzida ao Brasil pela elite brasileira, sempre teve um desprezo pelo país”. Palavras de Marta Góes, autora da peça “Um porto para Elizabeth Bishop”. Ora, então Bishop andava em más companhias e nós é que pagamos o pato? Além do quê, há elites e elites. O cineasta italiano Luchino Visconti nasceu em família aristocrata, era conde, e era comunista (daí o epíteto “Conde Vermelho”). É perfeitamente possível ser da “elite” e não ser fascista – são muitos os  exemplos de pessoas com esse perfil. Bishop era uma intelectual e não conseguia ter um olhar crítico sobre o que acontecia ao seu redor? É tudo culpa de seus coleguinhas? Então a autora considerada por muitos (leia-se Bruno Barreto) uma das maiores poetas do século 20 era uma atoleimada?

O cronista da Folha Antonio Prata, que costuma demonstrar sagacidade nos seus textos, me sai com um pensamento pedestre de tal natureza que é difícil acreditar que ele não tenha sido obrigado, talvez por alguma droga pesada, a lembrar que “Jorge Amado escreveu que Stálin era aquilo que de melhor a humanidade produziu”. Cita mais dois escritores para arrematar: “no entanto, são três grandes escritores”. Senhor Deus dos desgraçados, e quem disse que a questão é ser grande ou pequeno escritor? Vale lembrar ainda que o exemplo de Jorge Amado não vale nessa contenda: o grande romancista baiano fez afirmação sobre Stálin antes do famigerado pronunciamento de Khrushchov. Depois deste, Amado chegou a renegar a parte político-partidária de sua obra e até expulso-se do Partidão. Em tempo: Prata é um dos “assinantes entusiastas” da 451.

O que achei curioso (atenção para o eufemismo), entre outras, coisas nesse mosaico que mais parece ter saído da pena de Stanislaw Ponte Preta, é que ninguém se ocupou em lembrar que o ano em que a Flip homenageia uma autora estrangeira é o mesmo ano em que se comemora o centenário de um dos pilares de nossa literatura moderna, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, nascido em 1920. Bishop poderia ter sido a irmã Dulce, o Dom Helder, e ainda assim seu nome seria, no mínimo, inoportuno para uma homenagem literária brasileira. Porque além do mais há muitos gigantes da literatura brasileira que não foram homenageados ainda pela Flip, como Ariano Suassuna, Gregório de Matos, Castro Alves, Cruz e Sousa (quantos autores negros foram homenageados pela Flip até agora?) dentre tantos outros.

Por outro lado, é bem verdade que a Flip nunca havia sido tão Flip quanto agora. E diria o Conselheiro: mas com coragem, dessa vez, de ir além das cartas (marcadas) e anunciar aos quatro cantos do país: sou Flip, logo, não vou mudar.

*Henrique Wagner é poeta e crítico de literatura.

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