'A gente banaliza a crueldade', diz padre Júlio Lancellotti, sobre aversão a pobres

Religioso tem denunciado aporofobia; no dia 10, mostrou uma situação em Salvador

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  • Thais Borges

Publicado em 22 de janeiro de 2022 às 08:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Reprodução/Instagram

O perfil do padre Júlio Lancellotti no Instagram virou uma ferramenta poderosa. Com mais de 960 mil seguidores, ele consegue falar com uma comunidade maior do que a paróquia de São Miguel Arcanjo, que coordena em São Paulo. Foi lá que ele começou a compartilhar as primeiras postagens de exemplos de agorofobia, explicando o conceito dessa aversão aos pobres. 

Imediatamente, a coisa se espalhou. Ele passou a receber denúncias de situações agorofóbicas em diferentes cidades do Brasil. Desde então, tem trazido luz a um debate que, até então, permanecia invisível. “A partir do momento que eu fui publicando algumas fotos exemplificando essa questão, isso começou a surgir no Brasil inteiro. Todos os dias eu recebo. Igrejas, prédios públicos, bancos, shoppings, locais ligados ao comércio, essas coisas que chamam mais atenção”, explica. No último dia 10, uma das denúncias foi sobre Salvador. A foto de um canteiro com ponteiras de ferro logo foi identificada como sendo do restaurante Mignon, na Graça. Após a repercussão e as críticas, o estabelecimento retirou as ferramentas. 

Por telefone, em entrevista ao CORREIO, padre Júlio falou sobre as situações de aporofobia e os desafios para combater essa repulsa às pessoas mais vulneráveis. 

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O senhor tem conseguido chamar atenção para um problema antigo nas cidades, que são essas construções hostis às pessoas mais pobres e vulneráveis. Pode falar um pouco sobre o que é a aporofobia? 

A gente sabia que existia, mas não tinha o nome. A partir da obra da filósofa Adela Cortina, da Espanha, que cunhou esse conceito de aporofobia, entendemos que é a rejeição, o rechaço ao pobre que se manifesta de muitas maneiras. Há países que fecham fronteiras para refugiados e esses grupos são rejeitados sempre porque são pobres. Ela (Cortina) até usa o exemplo de que os turistas são muito bem vindos na Espanha, desde que sejam turistas. Se forem refugiados, não são bem-vindos. Assim também é com a gente aqui. No fim de semana, nas portas de estabelecimentos, tem jovens bonitos, com roupas de marca, não importa se estão usando droga ou o que for. Mas se forem moradores de uma comunidade e estiverem bebendo e dançando, vão chamar a polícia. Como começaram a chegar as denúncias para o senhor?

A partir do momento que eu fui publicando algumas fotos exemplificando essa questão, isso começou a surgir no Brasil inteiro. Todos os dias eu recebo. Igrejas, prédios públicos, bancos, shoppings, locais ligados ao comércio, essas coisas que chamam mais atenção.

De onde vem esse medo dos pobres?

Eu até uso um exemplo que pode parecer engraçado. Se, por exemplo, Juliana Paes e Thiago Lacerda sentarem na porta de qualquer loja e estabelecimento, todo mundo vai fotografar e ficar feliz. Mas se forem a Maria e o José da favela, da rua, mulambentos, negros, o pessoal vai jogar água e chamar a polícia. Por que é que, se for a Juliana Paes e o Thiago Lacerda, todo mundo vai gostar? Eles podem sentar ali na vitrine do Centro, todo mundo vai lá fazer selfie. Se o Gil do Vigor sentar lá na porta da vitrine de um shopping, alguém vai chamar a polícia para tirá-lo? Não, mas se for o neguinho catador de papel, ele nem vai entrar no shopping. Os dois são negros. O Gil é negro e o catador é negro. Por que um pode sentar e outro não? Porque um é pobre.Aí está o rechaço. Pobre é aquele que não te traz retribuição. Não te traz retorno. Gil vai te trazer retorno, publicidade, vai chamar atenção para tua loja. O dono da loja é capaz até de dar um produto de presente para ele. Mas o neguinho catador pode estar descalço, sujo, rasgado, e ninguém vai dar nada. 

Jogar água é muito simbólico. 

A zeladoria urbana recolhe tudo que as pessoas têm, às vezes no frio levam uma coberta, uma blusa, pegam remédios, documentos, pertences pessoais. Nós conseguimos, em São Paulo, uma legislação que regulamenta isso. Eu acho o fim da picada você regulamentar a maldade. Pode ser mau até um ponto, regulamenta o ódio. O próprio poder público financia, patrocina e faz isso. Nesses últimos dias, em São Paulo, está chegando o dia 25 de janeiro, que é a festa da cidade, e é uma loucura o que estão fazendo no centro. 

Como o senhor vê a proposta da lei que foi nomeada Júlio Lancelotti no Congresso contra as construções hostis? Acredita que será aprovada?

Acho difícil que seja. O senador Fabiano Contarato (PT-ES) propôs no Senado. Foi aprovado no Senado e de lá foi para a Câmara (dos Deputados). Lá, já passou na Comissão de Urbanismo e agora vai para a Comissão de Constituição e Justiça. 

Acho que existem interesses corporativos e imobiliários, por isso, acho muito difícil que seja aprovada. No Rio, na Câmara, ela foi aprovada e vetada pelo (prefeito) Eduardo Paes (PSD-RJ). 

Ouvimos da representante da Defensoria Pública do Estado que já existem algumas leis municipais e estaduais aqui, mas que é preciso ir além disso. Quais são os maiores desafios hoje para que isso aconteça? 

A própria Adela Cortina coloca que isso está na nossa estrutura humana. Essa fobia, esse rechaço ao diferente, ao que me ameaça, ao que eu não conheço. Ela propõe um processo educativo que saia da hostilidade para a hospitalidade. Esses sinais de hostilidade mostram uma cultura de uma cidade não hospitaleira.

O objetivo não é que as pessoas durmam embaixo dos viadutos ou embaixo das marquises, mas que haja respostas de moradia, de acolhimento, de proteção social para que as pessoas não tenham que dormir na rua. Onde tem sinal de hostilidade não tem nenhuma proposta de hospitalidade. Só tem hostilidade. Eles se defendem dizendo “ah, vocês querem que eles durmam aqui?”. Não, queremos que eles tenham um lugar digno, que não tenha sinal de hostilidade. 

Por que os abrigos não são opção para algumas pessoas em situação de rua?

Esses abrigos são rejeitados principalmente porque são uma tutela. A pessoa perde completamente a autonomia.Desde o primeiro albergue de São Paulo, que é da década de 1920, até hoje, que se chama centro de acolhida, a única diferença é que o de hoje tem tomada para carregador de celular. De resto, é igual. Hora para entrar, para sair, para comer, para sair, para levantar, para ir ao banheiro. É uma vida tutelada. Tem que comer na hora que eu ponho a comida, não na hora que você tem fome. Desde quando existe aporofobia?

Isso sempre existiu. Essa aversão sempre existiu, como existe a aversão à mulher, a negro. Se a mulher é pobre, é uma aversão maior. Se é uma mulher negra pobre, é maior. Se é uma mulher trans, é pior ainda. São as mesmas questões de gênero. Uma coisa é colocar na porta da tua loja, do teu o estabelecimento a Pabllo Vittar. Outra é pegar uma mulher trans da rua e colocar lá, desdentada, suja. As reações são diferentes. Com uma, todo mundo vai fazer selfie, vai cantar, fazer de tudo. Com a outra, vão olhar se ela é suja, se é negra, se ela está mal cheirosa. No fundo, todas essas questões são questões de classe: é o pobre, o refugiado, o imigrante. 

E com relação à mentalidade da população em geral, como é possível transformá-la? 

É um processo educativo difícil, longo, mas é um processo educativo que vai pautar pela ética, pelo bem comum. Uma cidade precisa ser hospitaleira para os pobres, para os indesejáveis. Esse é o nosso grande desafio civilizatório e o grande desafio de sermos de verdade uma democracia. Porque, por enquanto, a democracia é só um conceito na nossa cabeça. Não existe democracia quando tem gente morrendo de fome, pessoas comendo do lixo.É todo um projeto social. O nosso projeto social no momento é excludente. É difícil, você vai ter que lutar contra a corrente, mas é viável. Vejo que a partir do momento que a gente está mostrando, elucidando essa questão, muitas pessoas estão percebendo. Hoje o conceito de aporofobia ainda não é amplamente conhecido, mas já é bem mais conhecido. As pessoas estão aprendendo a localizar. É como aquele restaurante aí de Salvador. Era extremamente agressivo e era um risco à segurança pública, a uma pessoa idosa, uma criança. Uma criança que está brincando pode empurrar outra. Uma pessoa idosa pode perder o equilíbrio. São essas questões que a gente percebe que a hostilidade te cega, não te faz perceber, te tira a sensibilidade de perceber que você pode ferir uma pessoa querida. A tua vovó ali pode se machucar. Mas não deve machucar nem a vovó que eu amo, nem a pessoa na rua. 

A gente vai banalizando a crueldade, a desumanidade e o patrimônio fica importante. A aporofobia é seletiva.