'A máscara fica': por que tanta gente não dispensa a proteção nem em locais abertos

Na Bahia, a obrigatoriedade do uso de máscaras deixou de existir em 12 de abril

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  • Thais Borges

Publicado em 8 de maio de 2022 às 07:00

. Crédito: Foto: Shutterstock

Entre a multidão que acompanhava o show de Gilberto Gil na Concha Acústica, no fim do mês passado, a advogada Lorena Peixoto, 27 anos, se destacava: logo na primeira fileira, era uma das únicas pessoas usando máscara. Quem conhece Lorena já sabe que, ao encontrá-la, será assim: mesmo após três doses da vacina e depois do fim das restrições determinadas pelas autoridades, ela estará usando máscara. 

Pode ser em um show, que só agora voltou a frequentar, mas também no aniversário da afilhada com a família, numa reunião de amigos ou enquanto faz musculação na academia. Ela e a mãe, hipertensa e diabética, se afastaram de todos nos dois últimos anos. Só saíam de casa para o essencial. Hoje, Lorena se considera mais ‘tranquila’, mas não a ponto de aposentar a máscara. “Ainda fica aquele resquício de não saber o que está pela frente pela própria instabilidade da pandemia. Teve um momento em que melhorou, depois piorou de novo. Estou na transição de ver o que está por vir daqui para a frente, mas a gente acabou se acostumando até na parte social”, analisa ela, que, como muita gente, também ‘evoluiu’ na qualidade das máscaras que usa. No início, preferia as cirúrgicas. Depois que se inteirou mais do assunto, adotou de vez as PFF2 (também conhecidas como N95), consideradas mais eficazes para filtrar partículas do vírus.  “Acho que eu ‘taquei’ o f*da-se. Recebo só os olhares das pessoas por continuar usando, mas não faz diferença na minha vida”, enfatiza.  No aniversário da afilhada, Lorena (de vermelho) abraçou a irmã pela primeira vez depois de estarem vacinadas; no evento, ela continuou usando máscara PFF2 (Foto: Acervo pessoal) Em sua próxima saída de casa, leitora ou leitor, olhe em volta: Lorena não está sozinha (talvez até você que nos lê seja como ela). Seja em um ambiente fechado como o shopping, seja em uma praça ou parque, existe uma parcela relevante da população que decidiu que não abriria mão das máscaras ainda, obrigada. Não importa se há quem se sinta segura ou seguro e tenha abandonado o equipamento de proteção. Não é o caso desse grupo. Para eles, é quase como se nenhuma mudança tivesse sido anunciada no dia 12 de abril de 2022. 

Nessa data, o governo do estado publicava o decreto que desobriga o uso de máscaras em locais fechados na Bahia. Algumas cidades já vinham tomando medidas semelhantes no âmbito municipal - Salvador, por exemplo, havia liberado os equipamentos de proteção em alguns ambientes, a exemplo de academias e salões de beleza, no dia 5 de abril. Mas foi o dia 12 que sacramentou a nova situação da pandemia no estado. 

De acordo com o decreto, o uso de máscaras só continua sendo obrigatório em hospitais e outras unidades de saúde, farmácias, locais que prestam atendimento ao público (por parte de funcionários e servidores) e em situações de contato com infectados com o vírus da covid-19, mesmo que assintomáticos. 

Pico de casos A Bahia foi um dos últimos estados a desobrigar o uso de máscaras no Brasil. Em março, Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, já haviam liberado as pessoas a não usar até mesmo em ambientes fechados. Eles seguiram a tendência de outros países, a exemplo dos Estados Unidos, da França e do Reino Unido. 

Hoje, porém, esses países enfrentam um aumento de notificações de covid-19, o que especialistas também atribuem à flexibilização das medidas de restrição, inclusive a liberação das máscaras. Em abril, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) emitiu um alerta de risco de uma nova onda de covid-19 nas Américas, devido ao aumento de casos da doença na Europa e no leste da Ásia. Além da flexibilização, nessas localidades, a principal razão por novos surtos é a variante Ômicron BA.2, uma sublinhagem da cepa que provocou explosão de ocorrências no Brasil entre janeiro e fevereiro. 

Esta semana, a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) divulgou que registrou um aumento de 82% nos resultados positivos dos testes de covid-19 feitos nas farmácias do país. O índice foi registrado entre os dias 18 e 24 de abril em comparação à semana anterior, de 11 a 17 de abril. Na última semana, o Brasil passou a ter crescimento na média de mortes por covid-19. Os estados que têm puxado essas estatísticas são Rio de Janeiro, Goiás, Pará, Minas Gerais e São Paulo. No Rio, a alta foi de 287% no número de mortes. 

Até mesmo a China, que desde o começo da pandemia tem tentado manter a estratégia 'covid zero', decretou confinamento total em Xangai, há pouco mais de um mês. A ideia é evitar que um novo surto do vírus se espalhe por outros locais do país. Esta semana, a capital Pequim registrou 51 casos da doença em 24 horas e foi o suficiente para decretar o fechamento de algumas estações de metrô e o isolamento de complexos residenciais. 

Por isso, ainda que a Bahia venha se mantendo constante - eram 311 casos de covid ativos na última sexta-feira (6), para quem está no ‘time máscara’, a ideia de um mundo sem ela ainda parece distante. “Recentemente, fiz uma viagem para Petrolina em que fizemos um passeio no rio, um espaço aberto e me senti mais confortável. Mas, de resto, para mim, fica parecendo que vai ser muito difícil parar de usar”, diz a advogada Lorena Peixoto. 

Pressão social Só que um ponto comum no relato de quem prefere continuar com sua máscara é que, em muitas situações, existe uma espécie de 'pressão social' para deixar a máscara de lado."As pessoas soltam piadas. Gente que nem te conhece grita que a pandemia acabou, quando passa por você", conta o jurista e pesquisador André Bento Brasil, 40. Na faculdade, ele costuma ouvir pedidos para que tire a máscara, mas não atende. "Eu prefiro não arriscar ainda". André costuma usar máscaras cirúrgicas. No início, tinha até sensação de falta de ar, mas passou. Pelas incertezas da pandemia, prefere continuar com elas e 'pecar pelo excesso'.  André também prefere não arriscar e usa a máscara em todo tipo de ambiente (Foto: Acervo pessoal) "Quando imaginamos que está acabando, surge uma nova variante mais perigosa. Prefiro não arriscar, pelo menos durante um tempo. Já que me acostumei com a máscara, não me custa usá-la por mais um tempo. Uso em todos os lugares, abertos e fechados", completa.

Na televisão, não é diferente. No começo da pandemia, você provavelmente se acostumou a ver repórteres ao redor do mundo usando máscara em suas entradas nos telejornais. Do fim do ano passado para cá, porém, com o avanço da vacinação em diferentes estágios em cada cidade, essas imagens foram mudando. Hoje, encontrar alguém como o repórter Eduardo Oliveira, 42, é coisa rara. 

Trabalhando nos telejornais da TV Bahia, ele tem uma regra: fora das câmeras, sempre faz a matéria usando máscara. Na hora de gravar a passagem - aquele momento em que o jornalista aparece em uma matéria feita por ele -, só fica sem o equipamento de proteção se estiver totalmente sozinho. Se tiver alguém em volta, a passagem será com máscara.  Mesmo na televisão, Eduardo não deixa de usar a máscara (Foto: Acervo pessoal) "Eu uso desde o início. Quando falaram: 'tem que usar', no outro dia já estava usando. Comecei com as convencionais, depois fui evoluindo. Passei para a cirúrgica e depois para a PFF2, que é a que mais uso até hoje", explica. 

O jornalista segue com os cuidados porque diz não ver muita preocupação à sua volta. Assim, prefere continuar se cuidando."Continuo usando máscara por dois motivos. Primeiro por meu filho, que tem dois anos e ainda não está vacinado. Segundo porque não acho que a pandemia acabou. Essas ondas vêm e vão e a gente ainda tem muitos casos acontecendo", pondera. Eduardo também se acostumou com as piadas ou mesmo com as perguntas sobre até quando vai usar máscara. "Bullying eu sofro o tempo inteiro. Às vezes chego em um lugar e o cara fala 'Eduardo, calma que eu vou botar minha máscara' e dá risada. Acaba sendo um bullying, mas do bem", conta. 

Mas o 'até quando', por enquanto, é uma dúvida que ele não consegue responder. Só tem um critério: quando se sentir seguro de fato. "Você não é mais obrigado a usar, mas ninguém diz que você não pode ou não deve. Inclusive, o próprio decreto recomenda que se use em situações de local aglomerado, se tiver gente tossindo em volta. Se não se sentir à vontade, é importante", reforça. 

Esse é um cuidado que a aposentada Rose Dórea, 59, também não deixa de ter. Ela prefere as máscaras PFF2 ou as do tipo KN95 (que tem elásticos na orelha ao invés da cabeça), mas eventualmente usa as cirúrgicas. Paciente oncológica, ela diz que não pretende mudar o hábito. "Às vezes, até percebo alguns olhares estranhos por estar de máscara. Já aconteceu no mercado, no shopping. Mas não me afeta em nada. Vou continuar até o dia que achar que é seguro. No início, sentia falta de ar e agora não sinto nada. Fico numa boa", diz. Insegurança O receio de abandonar as máscaras - ainda que em situações específicas - é esperado, na avaliação da infectologista e imunologista Fernanda Grassi, pesquisadora da Fiocruz Bahia. Os dois últimos anos foram dramáticos; 2021, inclusive, talvez tenha sido ainda mais, já que concentrou mais de 400 mil das 664 mil mortes por covid-19 registradas no Brasil. 

"Não houve, no nosso país, um direcionamento central. Tudo ficou a cargo dos governos locais e isso dá uma insegurança muito grande", lembra. Mesmo com a tradição do Brasil nas campanhas vacinais, até a falta de um posicionamento maior quanto às vacinas confundiu a população, na avaliação dela. "A desinformação nesses momentos fez com que muita gente ainda esteja receosa, na minha opinião. Mas à medida que formos avançando mais, as pessoas vão acabar retirando a máscara em ambientes abertos", acredita. 

Segundo a infectologista, ainda se deve priorizar o uso dos equipamentos de proteção em ambientes de grande circulação, como o transporte público, além dos locais onde ainda são obrigatórios, a exemplo dos hospitais. Por outro lado, é possível tirar a máscara em locais abertos e nas situações onde é possível afirmar, com segurança, que todos estão com as três doses da vacina. Mas ela não vê problema em quem também prefere manter o equipamento de proteção mesmo nessas circunstâncias. "As pessoas devem fazer o que se sentem mais seguras. Tudo é uma questão de tempo. A gente está passando por uma situação que foi extremamente traumática, com muitas perdas, muito luto. É natural que tenham receio. Não existe um 'fim' da pandemia. Vai acontecer de forma gradual", explica. A situação na Bahia, hoje, é de uma redução do número de casos e dos índices de mortalidade considerada importante por especialistas, principalmente devido ao avanço da vacinação. Hoje, a Bahia tem 71% da população total vacinada com duas doses e 34% com a dose de reforço. Já o percentual de vacinados com duas doses no Brasil fica em torno de 75%, com 38% tendo recebido o reforço. 

"Saímos de um cenário desesperador, de pandemia de alto risco de morbidade, para um menos preocupante. Mas ainda tem muitas pessoas que devem continuar usando máscara", reforça o imunologista, alergologista e pediatra Celso Sant’Anna, professor do curso de Medicina da UniFTC.

Esse é o caso de crianças, pessoas imunossuprimidas, pessoas com comorbidades, pessoas que não se vacinaram ou não completaram o esquema de vacinação, profissionais de saúde e trabalhadores de outras áreas que tenham contato com grandes aglomerações. Ainda que estejam vacinados, os profissionais desses dois últimos grupos podem se tornar um vetor de novas variantes, por terem contato com muita gente. "Por todas essas razões, é importante fazer aquilo que se chama de gestão individual do risco. Houve uma liberação de máscara, mas se isso não faz com que você se sinta 100% seguro, cada um tem que avaliar dentro do seu ambiente de trabalho e da sua condição de saúde se vale a pena continuar utilizando ou não", argumenta Sant’Anna. Cidades e estados que desobrigaram o uso de máscaras antes de Salvador e da Bahia já enfrentam um aumento de casos de covid-19 nas últimas semanas. Ainda que os números não tenham se refletido em quadros graves ou crescimento da mortalidade, profissionais de saúde relatam uma busca maior pelos consultórios médicos e outros serviços de atendimento. 

"Não sabemos o impacto das aglomerações do Carnaval e de outras festas flexibilizadas. Agora vamos ter o São João na Bahia também. Os efeitos da doença só vão se verificar depois, mas ainda é cedo para adotar uma liberação total para todas as pessoas em todos os cenários". 

‘Cautela vem da compreensão de que a pandemia não acabou’, explicam especialistas

Antes de criticar ou questionar alguém que prefere continuar usando máscara, é preciso compreender que não é um decreto ou uma lei que vai definir o fim da pandemia. 

Uma vez que ainda existem localidades no mundo onde a pandemia da covid-19 tem atingido níveis intensos, inclusive de medidas de restrição, como a China, é natural que parte das pessoas ainda se sinta em situação de vulnerabilidade, como explica o psicólogo Renan Rocha, mestre e doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva da Ufba e vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia da Bahia. "O que extingue a pandemia é a condição de saúde da população submetida a ela", diz o psicólogo sanitarista. Além disso, desde março de 2020, não teve nenhum dia em que o Brasil não tivesse registrado casos ou óbitos por covid-19. "As pessoas ainda estão se contaminando, ainda estão morrendo e, nesse sentido, a cautela vem de uma compreensão sanitária de que a pandemia não acabou e a gente precisa se manter se cuidando. As pessoas têm o direito de permanecer de máscara, sobretudo porque não prejudica ninguém e há uma certa sensatez nessa decisão", enfatiza. 

Para o médico Jader Ferraz, especialista em psiquiatria e diretor médico do Espaço Bom Viver, é preciso debater o anseio social de ter uma rotina próxima à normalidade. Ao mesmo tempo, seria necessário encontrar um denominador comum com as pessoas que ainda têm receio de sair sem máscara. 

Há, portanto, algumas formas de lidar com a pressão social pela retirada ou abandono total delas."O primeiro ponto é dar sequência às ações como você imagina que são a proteção máxima para si. Deve tentar dialogar com as pessoas acerca da barreira de proteção, que tanto é um ato de cuidado para si como para quem tem o discurso de tirar", pondera. Se você é do 'time máscara' e se sente constrangida ou constrangido por amigos e parentes a tirá-la, a recomendação do médico é explicar a essas pessoas de que se trata de algo passageiro. "É um momento transitório. Estamos vendo a volatilidade das curvas de proteção e, nesse momento, preciso me proteger e quero te proteger. Dialogar é uma forma de deixar claro os argumentos para que a pessoa escute e perceba que é muito mais seguro algum método do que nenhum", completa Ferraz.