A moça do Itamaraty: conheça a primeira diplomata do Brasil, baiana de Salvador

Maria José de Castro Rebello Mendes nasceu em Salvador, e após dificuldades financeiras, se mudou para o Rio, onde se inscreveu e passou no concurso

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  • Da Redação

Publicado em 29 de março de 2021 às 15:00

- Atualizado há um ano

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Maria José de Castro Rebello Mendes (Foto: Acervo de família) “Dizem que é instruída, sabe diversas línguas, é excellente dactilographa... O concurso vai ser sensacional.” Assim anunciou o Jornal do Commercio, em 31 de agosto de 1918, com a ortografia da época, a participação da “senhorinha” Maria José de Castro Rebello Mendes, baiana de Salvador, no concurso que oferecia uma vaga de terceiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério das Relações Exteriores (MRE).

Entre as notícias sobre a Primeira Guerra Mundial e o alto custo de vida, ganhou destaque na capa a inscrição da “primeira moça que obteve no Brasil o direito de participar de um concurso official para preenchimento de um cargo publico de secretaria de Estado”, informou o jornal.

Mas não foi apenas se inscrever. Ao ler antes o anúncio sobre a vaga nos jornais, Marietta, como era conhecida em família, precisou se certificar se era mesmo possível, sendo mulher, concorrer a um cargo público. Em seu livro “Mulheres Diplomatas no Itamaraty”, de 2018, o ministro Guilherme José Roeder Friaça, hoje cônsul-geral adjunto em Madri, conta que Maria José buscou orientação de nada mais nada menos que Rui Barbosa.

Foi ele quem, por intermédio de seu filho, o deputado Alfredo Rui Barbosa, “respondeu-lhe não haver na legislação pátria dispositivo algum que incapacitasse as mulheres para o exercício de funções administrativas, e acrescentou estar prompto a lhe encaminhar os papéis do concurso, como realmente o fez”. Essa ajuda histórica do conterrâneo ilustre foi descrita pelo jornal A Noite, em uma reportagem cujo título pegamos emprestado para este especial.“Ao solicitar sua inscrição, Maria José é pioneira em duas frentes importantes: demonstrar que não pode haver terrenos impedidos às mulheres, como um todo, e que a participação feminina deve ser realidade em espaços de poder, originalmente, e ainda hoje, considerados como setores primordialmente masculinos”, comenta o ministro Friaça.No despacho em que a aceitava, o chanceler e ex-presidente da República Nilo Peçanha, então chefe do MRE, admitia não haver empecilhos, mas acrescentou: “Melhor seria, certamente, para o seu prestígio que [as mulheres] continuassem a direcção do lar, taes são os desenganos da vida publica, mas não há como recusar a sua aspiração, desde que disso careçam, e fiquem provadas suas aptidões”. A frase que abre esta matéria é dele também, descrevendo a expectativa pela realização do concurso.

Imaginem o frisson que foi a aprovação de Maria José. Sim, ela passou. Venceu a concorrência de cinco candidatos homens, fazendo provas orais e escritas de português, inglês, alemão, francês e italiano, datilografia, história do Brasil, história geral, geografia do Brasil, geografia geral, direito, álgebra e aritmética. Foi nomeada para o cargo em 28 de setembro de 1918. Rodeada de homens, Maria José faz prova de datilografia no concurso do Ministério das Relações Exteriores em 1918 (Foto: Acervo da família) Dificuldades Quando fez as provas, aos 27 anos, Maria José não morava mais no Rio Vermelho, em Salvador. Ela tinha se mudado com a família para o Rio de Janeiro, após a morte do pai advogado e o fechamento da escola que a mãe administrava junto a uma espécie de governanta alemã. Foi Mathilde Elisabeth Schroeder quem ensinou as línguas estrangeiras a Maria José. Maria José (à esquerda) com amigas, em Salvador (Foto: Acervo de família) Também depois da morte da imigrante, a família não teve mais como manter a escola aberta, e com a pobreza batendo à porta, a permanência em Salvador ficou insustentável. No Rio, tinham parentes, mas elas arranjaram uma casinha no bairro de Botafogo, onde Maria José começou a dar aulas particulares de línguas.

“Ela ficava muito cansada. Foi quando leu o anúncio do concurso”, afirma o filho de Maria José, Guy Mendes Pinheiro de Vasconcellos, 88 anos, auxiliado pelo arquivo que a família conservou. É que ele tinha só 3 anos quando Maria José faleceu, em 1936.

Os filhos confirmam aquilo que já tinha sido dito pela mãe aos jornais da época: ela só se inscreveu no concurso por necessidade, sem “aspirações reacionárias”. “Nunca teve alguém que visse isso como uma glória [a ser alcançada]. Minha mãe era mais do tipo família, de uma boa cultura, relações boas, e eu acredito que foi mesmo mais por necessidade [o fato de ter se tornado diplomata]. Tenho a impressão de que ela não deve ter ficado muito aborrecida quando se aposentou, mas não posso garantir”, conta a filha Yolanda Pinheiro de Vasconcellos Gladulich, hoje aos “95 anos e meio”.

Mesmo assim, a diplomata sempre fez questão de que a lei prevalecesse, com destaque para a igualdade de condições. Por isso, foi atrás do parecer favorável à sua inscrição no concurso e de tantos outros direitos, como receber salário durante a licença-maternidade.

“É arrebatadora a forma como Maria José percebia sua presença nesse espaço, sem acanhar-se e sem considerar que o fato de ali estar devia ser seguido de concessões. Exemplo claro disso foi recorrer sem medo às vias administrativas para garantir que lhe mantivessem o salário quando gozava de licença-maternidade, em 1924. Nessa ocasião, o salário lhe havia sido retirado quando existia disposição legal em contrário”, afirma o ministro Friaça.

Quando assumiu, em 1º de outubro de 1918, foi preciso providenciar um banheiro feminino, pois existiam somente sanitários masculinos na repartição.

Aposentadoria Maria José conheceu o marido, Henrique Pinheiro de Vasconcellos, na época do concurso e com ele se casou em 1922, adotando o nome de Maria José Mendes Pinheiro de Vasconcellos. Teve cinco filhos, sofreu abortos e pediu para sair do Itamaraty quando o marido foi transferido para Bruxelas em 1934. Os dois não poderiam exercer o mesmo cargo no exterior, e ela abriu mão do seu. Maria José com o marido, Henrique Pinheiro de Vasconcellos, de quem herdou o sobrenome (Foto: Acervo da família) Ainda enquanto a mãe trabalhava, dona Yolanda se lembra do cuidado que Maria José tinha com a casa e com os filhos:“Era muito boa dona de casa. Eu me lembro dela sempre lidando com as empregadas, lidando com a limpeza da casa. Com os filhos, principalmente, ela tinha muito contato. Vivia nos ensinando, lia muito pra nós, contratou uma governanta alemã para nos ensinar alemão. Uma mãe muito presente”.Dois anos depois da aposentadoria, Maria José sofreu de osteomielite, uma infecção nos ossos para a qual não havia tratamento adequado no século passado. O marido pediu a volta para o Brasil, onde ela morreu aos 45 anos, deixando, além de Yolanda, com 11 anos, e Guy, com 3, os filhos Miriam, 13; Yara, 12; e Acyr, 2. Ainda vivem Yara, Yolanda e Guy para contar essa história, com a ajuda dos arquivos e de estudiosos debruçados sobre a trajetória da primeira diplomata do Brasil. Baiana da gema.

Carreira ainda dominada pelos homens

Em 2018, quando foi comemorado o centenário do ingresso da primeira diplomata no Ministério das Relações Exteriores (MRE), apenas 23% dos brasileiros nessa carreira eram mulheres (360 de um total de 1.562).

Hoje, de acordo com o MRE, dos 3.168 servidores do ministério, 1.988 são do sexo masculino e 1.180 do sexo feminino, sendo que a diferença no cargo de diplomata, entre homens e mulheres, é uma das maiores dentro da pasta. São 1.192 diplomatas homens e apenas 355 mulheres.

Em um texto publicado no El País Brasil por ocasião do centenário, a embaixadora Vitoria Cleaver escreveu que, apesar dos avanços na comparação com os primeiros 50 anos do século passado, “há duas grandes batalhas a serem enfrentadas: de um lado, a pequena participação e aprovação feminina no concurso de admissão à carreira de diplomata e, de outro, as dificuldades de ascensão funcional, com a consequente baixa taxa de ocupação dos postos de chefia na hierarquia do Ministério”.

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