A morte da menina-maravilha é coisa nossa

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  • Paulo Sales

Publicado em 30 de setembro de 2019 às 05:00

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Numa época que hoje soa tão remota, Ary Barroso falava de um “Brasil lindo e trigueiro /É o meu Brasil brasileiro /Terra de samba e pandeiro”. Um tom ufanista retomado décadas mais tarde por Jorge Ben, que cantava: “Moro num país tropical /Abençoado por Deus /E bonito por natureza”.

Quem se debruçar sobre o Brasil de 2019 provavelmente não vai encontrar motivos para tamanha exaltação. Os tempos são outros. E as canções que melhor captam o espírito desta era pavorosa continuam sendo as de Chico Buarque de Hollanda. Não necessariamente o Chico de clássicos como Vai Passar ou Bye Bye Brasil. Mas sim aquele que fala de uma dor devastadora, tão bem traduzida em versos como: “Oh, pedaço de mim /Oh, metade arrancada de mim /Leva o vulto teu /Que a saudade é o revés de um parto /A saudade é arrumar o quarto /Do filho que já morreu”. Chico fala de um drama individual que no Brasil se transfigura em tragédia coletiva. Tragédia que ele volta a descrever aqui: “Quem é essa mulher /Que canta sempre o mesmo arranjo /Só queria agasalhar meu anjo /E deixar seu corpo descansar”. A menina Ágatha Félix, de 8 anos, morta com um tiro de fuzil no Rio (foto/reprodução redes sociais) Estribilho semelhante pode ser ouvido quase toda semana nas favelas do Rio de Janeiro. E no último dia 20 ele soou ainda mais alto e dolorido, quando um tiro de fuzil disparado por um policial matou Ágatha Vitória Sales Félix, de 8 anos. A menina-maravilha, estudante aplicada, que fazia aulas de balé e inglês, filha e neta de pessoas que batalhavam duro para que ela deixasse a sina de miséria das gerações que a precederam. É uma dor que arrebenta, dilacera, aniquila. E revolta. Porque, por mais bárbaro que seja, o assassinato de Ágatha – cometido por quem em tese devia protegê-la – não é um caso isolado.

Este ano, outras quatro crianças morreram vítimas de balas perdidas decorrentes de incursões da polícia em favelas da cidade: Kauê dos Santos, Kauã Rozário, Kauan Peixoto e Jenifer Gomes. Há ainda as que, mesmo baleadas, conseguiram sobreviver. E que voltarão à rotina de arbitrariedade e truculência, cuja imagem mais emblemática é a de helicópteros disparando sobre áreas densamente povoadas, onde funcionam escolas, mercados, postos de saúde. Enfim, onde vivem pessoas. São atos sistemáticos contra a vida, ordenados por uma excrescência que atende pelo nome de Wilson Witzel.

A essa altura, parece evidente que esse elemento precisa ser julgado o mais breve possível pelo Tribunal Penal Internacional. Mas o que não me sai da cabeça é: como ele alcançou tamanho poder? Tudo bem, Hitler também foi eleito, mas… precisávamos mesmo passar por isso? Quanta dor ainda será gerada por esse estado de barbárie? Como é possível que tamanha escalada de ódio ainda encontre eco em parte da sociedade? Há algum tempo, Verissimo escreveu: “O sono da razão gera monstros, diz aquela frase numa gravura do Goya. O sono da razão parece ficar cada vez mais profundo, na noite atual”. E não há verso de Chico capaz de iluminar esse breu.