A navegação insondável de março

Linha Fina Lorem ipsum dolor sit amet consectetur adipisicing elit. Dolorum ipsa voluptatum enim voluptatem dignissimos.

  • D
  • Da Redação

Publicado em 7 de março de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: .

Procuro razões para escrever esta crônica — ausente o alimento da esperança. Na varanda, a paisagem retangular dos últimos meses. Os mesmos prédios altos, os casebres com tijolos aparentes, o inalcançável mar, a navegação insondável da manhã de março. Amanhecemos solenes como se todos os dias fossem o da notícia próxima.

Contrariando a lógica da mudez, tentamos entender quem cuspiu aos céus a negação que desaba agora sobre nossas cabeças, saliva que retorna excruciante chuva ácida. Meteoros são piadas, não há estardalhaço, estamos fora da rota dos astros. A destruição segue aos poucos e sequer há nomes enfileirados numa lista, como nos acidentes aéreos.

Também não há abismos cavados no solo da Terra, alguma cicatriz indelével no deserto que dê conta do impacto. Nenhum asteroide vindo do espaço invadiu a nossa atmosfera, estilhaçando-se em fragmentos gigantescos que caíram sobre as cidades e as pessoas. Administramos o pasmo diante do minúsculo, universo que nos ameaça.

O meteoro microscópico esteve ali o tempo todo, insuspeito, como tantas vezes o ódio por trás de gestos de gentileza. Como o que há de homúnculo na humanidade se agiganta em linchamentos. Como microrganismos anônimos tiram sua força de mutações infinitas e ganham nomes de planetas. Em torno de satélites, orbitamos.

Vítimas de uma resignação mórbida, estamos acuados há quase um ano, silenciados, isolados em nossas casas, os que têm casa. Morrendo nas ruas, os desabrigados. Morrendo em celas, os encarcerados. Morrendo na porta dos hospitais, os sem leito. Festejando o desespero, os insanos. Escrever, então. Respiro. Papel em branco na tela.

Olho outra vez o barco que cruza o azul no retângulo da varanda. O mesmo cargueiro, talvez um outro. Pescadores. Mergulhadores à caça de naufrágios. Escrever, então. Sobre o silêncio de todas as horas que se acumularam desde março do ano passado. Sobre as vozes que se calaram, que se calam. Sobre nossa própria voz trêmula de medo.

Procuro razões para escrever esta crônica — e eis que a própria busca reaviva uma espécie de esperança. Texto surgindo na tela. Sobre o vírus, o isolamento, as vacinas, e as notícias que prenunciam o colapso. Sobre amigos, irmãos, amores que habitam nosso coração imperfeito. Escrever até quando parecer impossível. Escrever, então.