A perfeição das páginas em branco

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  • Kátia Borges

Publicado em 25 de outubro de 2020 às 12:49

- Atualizado há um ano

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Em meio à pandemia, enquanto o distanciamento social se alonga, reencontro devagar o caminho de volta às minhas estantes. Ao contrário de toda gente que mente ter lido todos os volumes enfileirados em suas bibliotecas particulares, confesso que gosto de descobrir títulos esquecidos, e mesmo intocados, em minhas prateleiras.

Muitas vezes, admito, fico até surpresa com aquilo que eu encontro. O meu exemplar quase novo do romance O homem do Castelo Alto, de Philip K Dick, por exemplo, que tive vontade de ler após uma conversa virtual com o poeta Nilson Galvão sobre o I Ching. Há muito tempo esses livros me acompanham.

Alguns deles seguem comigo desde a adolescência, atravessando ao meu lado a vida adulta, em cinco ou seis caixas de papelão que eu carregava com cuidado de um lado a outro da cidade. A parte mais valiosa de tudo que possuía, recuerdos das andanças pelos sebos na santa ignorância que protege os muito tolos.

Esses livros têm sido o meu refúgio ainda agora, quando o hexagrama 49 pressagia repetidamente uma revolução que se aproxima e que se oculta sob a aparência banal do cotidiano. O retorno às estantes me resguarda um pouco. E como me fez falta ler quando faltou o chão e o mundo girou e eu girei em volta.

Aprendi a fazer pão, consertar eletrodomésticos, trabalhar de modo remoto. Voltei a ler! Andei revisitando Cortázar nas últimas semanas – Bestiário e Final do Jogo. E que engraçado como essas leituras e algumas outras foram se conectando sem que eu fizesse qualquer esforço, porque a trilha percorrida foi aleatória.

Acabei indo parar numa coletânea de contos fantásticos que comprei na Librería El Virrey, em Punta Del Este, onde entrei por causa de uma edição em espanhol de Água Viva que estava na vitrine. Havia várias páginas em branco nesse livro, certamente por um erro de impressão, entremeando as narrativas.

Mas era como se a imperfeição daquele objeto fizesse parte do próprio texto de Clarice Lispector. Só então percebi o quanto andava distante e fora de forma. E devo dizer que eu voltei às minhas estantes muito burra. Como quem esquece o próprio idioma e insiste no sotaque do país no qual viveu o exílio.