A queda de um gigante: Hospital das Clínicas tem 20% de cirurgias canceladas

Complexo é chamado de 'berço da formação'; médicos e estudantes detalham as dificuldades

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 2 de agosto de 2020 às 04:59

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Em outubro de 1968, o Hospital Universitário Edgard Santos (Hupes), da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em Salvador, protagonizou um momento histórico. Pela primeira vez nas regiões Norte e Nordeste, era realizada uma sessão de hemodiálise.

Inaugurada 20 anos antes, era para a unidade, conhecida como Hospital das Clínicas e instalado no bairro do Canela, que seguiam os equipamentos mais tecnológicos. Hoje, o complexo vive um declínio. Menos da metade das salas de cirurgia - 4 das 10 - funcionam, há obras paradas e equipamentos empacotados avaliados em R$ 20 milhões. 

Na última segunda-feira (27), um médico escreveu à reportagem que já apurava denúncias de sucateamento do hospital para exemplificar a situação: “Hoje mesmo, cirurgias foram canceladas por causa de ar-condicionado”.  O hospital é gerido, desde 2013, pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), vinculada ao Ministério da Educação, que administra 40 outros hospitais universitários.

[[galeria]]

O cancelamento de uma cirurgia, mostram pesquisas, deve acontecer só em última hipótese, sob risco de interferir no estado do paciente, aumentar o tempo de internação e o risco de infecção. E pode denunciar a falta de estrutura hospitalar. De janeiro a maio deste ano, foram 140 operações canceladas - 20% do total de 687 realizadas -, segundo lista acessada pelo CORREIO.

No Hospital Ana Nery, também universitário e gerido de forma compartilhada entre Ufba e Secretaria da Saúde da Bahia (Sesab), foram 1.657 cirurgias até maio, nas seis salas disponíveis. A taxa de cancelamento ali é de 10%.“[O Hupes] É um berço da formação, mas que foi se adaptando às penúrias e aceitando sua posição de subserviência”, opina um médico que pediu para não ser identificado.Anualmente, em média, 518 estudantes de Medicina fazem residência no hospital. Alunos de nove cursos de saúde - como Enfermagem - também atuam na unidade, a depender da época do estágio.

O Complexo Hupes é formado por três prédios interligados por passarelas - o principal, o Hospital Pediátrico e o Ambulatório Magalhães Neto. Pelo menos 37 modalidades médicas são oferecidas e 900 pessoas são atendidas por mês nos prédios principal e no Hospital Pediátrico. No Magalhães Neto, que concentra a maioria dos ambulatórios especializados, são, em média, mil consultas por dia, vindas tanto de Salvador quanto de cidades do interior. Atualmente, o ambulatório também abriga 40 leitos de covid-19.

Centro 'asfixiado'  O fechamento da Unidade Metabólica é o capítulo mais recente das dificuldades apontadas pelos médicos. Lá funcionava um centro de pesquisa e tratamento de doenças metabólicas e nutricionais graves. A irmã de Isabella Jesus, 25 anos, cuja identidade será preservada a pedido da família, era paciente do centro  desde 2013, onde controlava uma síndrome rara - a hiperargininemia, caracterizada por um defeito na metabolização de um aminoácido chamado arginina. 

A depender da gravidade, a falta de tratamento pode afetar o sistema nervoso. “O fechamento preocupa bastante nossa família”, diz a irmã da paciente. O coordenador da unidade, o pediatra Hugo Ribeiro, acredita que há um processo de asfixiamento do centro, “que era elogiado  e produzia cientificamente”. 

O motivo do fechamento, informou a  Ebserh, foi a baixa taxa de procura durante a pandemia, mas seria “temporária. “A diminuição de pacientes não é única daqui e esses pacientes precisam do tratamento”, contrapõe Hugo. Não há prazo para reabertura.

Reparos Fundado em 1948 pelo então reitor Edgard Santos, para atender às demandas dos cursos de Medicina e Enfermagem e prestar serviços de alta complexidade à população, o Hupes tem, para este ano, uma receita estimada em R$  55,1 milhões. O total de gastos com investimentos, pessoal (2.420 funcionários) e manutenção não foi informado. 

No complexo, é possível observar reparos não levados adiante. Onde deveria funcionar a Emergência Pediátrica, uma porta de madeira verde está fechada, sem nenhum aviso. As obras no local foram iniciadas em 2011 e estão paradas. A Ebserh respondeu que a intervenção está em fase de uma nova licitação. As obras no centro cirúrgico, que trabalha com menos da metade da capacidade, aguardam duas fases para a conclusão. 

Mesmo a área de Nefrologia, pioneira no Hospital, enfrenta dificuldades. Das 22 máquinas de Hemodiálise, 10 não funcionam adequadamente. A consequência é um atendimento 50% menor do que a unidade poderia oferecer. Na noite da última quinta (30), 10 novas máquinas de Hemodiálise foram compradas.

Em 2017, os ministérios público Estadual e  Federal ajuizaram uma ação conjunta para pedir funcionamento do setor em três turnos - o que ainda não acontece - e tratamento efetivo dos pacientes. O MPF não informou, até a publicação da matéria, as consequências jurídicas da ação.

Descontinuidades  A crise do Hupes não é nova. Durante a Ditadura Militar, entre 1964 e 1985, o hospital viveu os primeiro problemas de financiamento. Na década posterior, fez parte do chamado Projeto Piloto de Reestruturação dos Hospitais Universitários do Ministério da Saúde, uma tentativa de melhorar as gestão desses hospitais. 

Mas as dificuldades permaneceram. Em 2013, a Ufba aderiu a uma segunda tentativa federal de melhora de gestão e transferiu a administração do Hupes para a Ebserh. Essa adesão pode ter sido motivada porque, em 2012, o Ministério Público da Bahia ajuizou uma ação contra a Ufba devido à precariedade no Hupes. 

A mudança de gestão foi vista com esperança. Porém, a desestruturação permaneceu. Ainda hoje, depois de quase 10 anos após a compra, estão guardados o equivalente a R$ 20 milhões em equipamentos, que incluem um aparelho de ressonância magnética e dois de densintometria óssea - que não foram comprados pelo hospital, mas vindos de um acordo com um laboratório - e um de cintilografia.

O atual superintendente do Hupes, Antônio Lemos, afirmou à reportagem que a ressonância e a cintilografia precisam de reparos para funcionar, o que já está planejado. 

Auditoria Uma auditoria interna, divulgada em março deste ano pela Ebserh, constatou a existência de irregularidade no contrato terceirizado junto à Fundação de Apoio à Pesquisa e à Extensão (Fapex) em R$ 11,7 milhões, por sonegação de informações, não cumprimento da legislação de Transparência e ausência de fiscalização. A Ufba diz que "as conclusões do trabalho são questionáveis" e a Fapex, responsável por 'gerir projetos' na universidade não respondeu. A Ebserh informou que as avaliações feitas são monitoradas pela Auditoria Interna, que publicará um novo resultado em 2021.

Aos problemas de gestão se soma um racha político que ganhou força em 2018, quando Antônio Lemos saiu vitorioso das eleições e começou o segundo mandato. Um grupo adversário suspeita da eleição e levou a questão à Justiça. Uma liminar chegou a  impedir a posse, mas outro juiz  extinguiu o processo. A eleição ainda está em avaliação pelo Conselho Universitário da Ufba. 

O atual superintendente disse ao CORREIO que sua vitória é legítima. Ele acredita que as dificuldades do Hupes são históricas, mas que o hospital mantém seu legado. Durante a entrevista, defendeu as tentativas de melhorias no complexo. Sobre as cirurgias canceladas, ele diz: “Quando eu assumi, encontrei quatro salas de cirurgia funcionando”.  Segundo a Ebserh,  havia 16 obras paradas em 2014.

Desinteresse Os descontentamentos com o Hupes causam desinteresse de professores da Ufba em participar das atividades no hospital, relatam médicos e estudantes. “Muitos não têm mais aquela motivação”, diz um docente. Das cirurgias canceladas, 21 - 15% do total - têm ligação direta com o não comparecimento do médico.

As dificuldades vividas pelo Hupes - ou por outros hospitais universitários - podem afetar a disposição dos estudantes em se engajarem na rede pública de saúde, acredita Lígia Bahia, represente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Um hospital universitário, ela define, "é um criadouro de pesquisadores". 

Um estudante de Medicina que fez internato no Hupes antes da epidemia conta que a situação é “desmotivante”. "Isso acarretou problemas na minha formação, participei de muito menos cirurgias do que eu poderia”, diz. 

Lígia Bahia acredita que não só o Hupes, mas todos os hospitais universitários do país, passaram por um sucateamento potencializado pelos ataques às universidades públicas. Sem um esforço coletivo para reerguer essas unidades, perde a ciência e, portanto, a sociedade, que se vale das suas descobertas para avançar, assegura ela.  

Hospital era destino das maiores inovações Na década de 1960, o tratamento de pacientes renais crônicos ainda era feito com a ingestão de pílulas de carvão vegetal ativado, tidas como capazes de auxiliar na limpeza de impurezas do sangue. A primeira hemodiálise das regiões Norte e Nordeste aconteceu na tarde do dia 11 de outubro de 1968, na enfermaria 3C, no segundo andar. O paciente era um professor com uma insuficiência renal aguda. 

Naquela época, lembra o nefrologista Ernane Gusmão, responsável pelo procedimento, o “Hospital das Clínicas era o que de melhor existia. Os grandes eventos tecnológicos da Bahia começavam lá”. O mesmo Hernane trouxe a técnica da arteriografia periférica, usada no diagnóstico e avaliação de malformações arteriais, por exemplo. O médico foi discípulo de Jorge Valente.

Da graduação, na década de 70, ao mestrado, a endocrinologista Reine Chaves lembra de um Hospital das Clínicas onde as principais referências da área de saúde lideravam descobertas e inovações como o modelo multidisciplinar no tratamento de Diabetes. Foi ela quem idealizou, em 1996, depois de sair do Hupes, o Centro de Referência Estadual para Assistência ao Diabetes e Endocrinologia.

O Hospital das Clínicas ainda oferece serviços de complexidade e conduz pesquisas internacionais, como o estudo global que investiga o impacto da leishmaniose em três países. É referência, por exemplo, na realização de cirurgias ginecológicas minimamente invasivas e no tratamento de doenças infectocontagiosas. Recentemente, o Laboratório de Infectologia foi pioneiro ao padronizar o uso da saliva para detecção do coronavírus.

Ao longo do tempo, o Hupes acumulou uma lista de inovações e foi o berço da formação de especialistas renomados no pais - como o pneumologista Almerio Machado e o endocrinologista Thomaz Cruz. Como a endocrinologista Reine Chaves define, “o Hupes sempre foi um espaço de ciência e arte", ainda que, nem sempre, tenha encontrado ou encontre o ambiental ideal.