A Revolta dos Zamuris: falso show de Ivete causou confusão e decidiu eleição na Bahia

Candidato descumpriu promessa de levar cantora a showmício em Conceição da Feira, em 2004; quebra-quebra entrou para a história da cidade

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  • Da Redação

Publicado em 23 de janeiro de 2022 às 06:00

- Atualizado há um ano

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Ivete Sangalo puxa o bloco Cerveja & Cia no Carnaval de Salvador, em 2004 (Foto: João Alvarez/Arquivo CORREIO) Eu não acredito que Ivete Sangalo fez uma palhaçada dessa com o povo de Conceição da Feira. Que palhaçada? Talvez nem ela saiba, mas o povo da simpática cidadezinha no Recôncavo lembra bem, mesmo passados quase 20 anos do ocorrido.

Era final de setembro de 2004, reta final da eleição, quando o então prefeito Antonio Alves Serra, o Serra, buscava em ações de marketing ousadas uma tábua de salvação para garantir a reeleição. Sua popularidade estava em baixa e o sentimento geral era de que o candidato do PP vinha bem atrás na disputa contra Chico Guedes (PFL) e Val de Maninho (PT).

Mesmo com a máquina na mão, era nítido que sua campanha precisaria criar um fato novo (ou vários) para virar o jogo nas urnas. Um jingle chiclete, um show de estourar a boca do balão (Ivete, em tese) e, claro, o próprio balão, foram as cartas na manga usadas por ele.

Jingle e balão A primeira investida foi bem sucedida: Serra escolheu ‘Flor do Reggae’, hit de Ivete Sangalo, para adaptar e usar como jingle. “Grudou na cabeça da galera, todo mundo sabia cantar”, relata o cineasta, escritor e produtor cultural Marvin Pereira. 

O sucesso empolgou o prefeito-candidato, e o sonho de renovação do mandato voou alto. Para representar essa ascensão, Serra lançou mão de um balão (daqueles grandões) para obter mais visibilidade. E, de novo, acertou em cheio. “Ele fez um puta investimento num balão sobrevoando a cidade com o nome ‘SERRA 11’, jogando papel picado… Aquilo para a cidade, naquela época, era algo de outro mundo”, avalia Marvin.Outra conceiçoense que nos ajuda a contar essa história é Talita de Lima, estudante de Publicidade de 27 anos que, naquela eleição, ainda era uma garotinha, mas também lembra do “balão jogando santinhos pela cidade” e otras cositas.

Com a campanha parecendo ir de vento em popa, o prefeito estava empolgado, e era nítido isso em suas falas de palanque. “Ele passou a campanha dizendo que iria trazer Ivete Sangalo no último comício dele”, relembra Talita, citando os relatos dos mais velhos.

Grande dia Bom, enfim chegou o grande dia. O palco do showmício (que era permitido na época) foi montado em frente à prefeitura. Ivete, já naquela época estrela de primeira grandeza da música, iria tocar na cidade de cerca de 20 mil habitantes, e quase ninguém duvidava que depois do apoio da cantora, Serra estaria reeleito.“Começou tudo bem, uma banda aqui da cidade se apresentou, e quando terminou a outra banda que iria tocar, Ivete não tinha chegado ainda. Foi quando começou a enrolação, dizendo que tanto uma outra atração quanto Ivete estavam chegando”, conta Talita.O locutor, que em nenhum momento anunciou que teria show de Ivete, mas apenas se referia à “grande atração” que todos aguardavam, começou a pedir calma. A cada minuto, os ânimos se exaltavam mais, e o zum zum zum nos bastidores logo chegava aos ouvidos de um e de outro na plateia, e ali viralizava. 

“Um tempo depois, justificaram que Ivete estava demorando porque estava vindo dos Estados Unidos. Se não me engano o próprio candidato subiu no palco para dar essa informação”, diz Talita, sem muita certeza.Marvin cita detalhes extras: “Quando a última banda já tava dizendo que o show tava acabando, e Ivete ainda não havia aparecido, as pessoas começaram a achar estranho. Vez ou outra, entoavam ‘Ivete, cadê você, eu vim aqui só pra te ver’. O locutor, acho que sem saber o que fazer, começou a inventar uma fanfic, de que Ivete tinha se atrasado pois ela estava chegando de Nova York, mas que ela tava vindo de helicóptero e que pousaria no estádio municipal”. A informação de que Veveta chegaria no estádio deu a largada para uma São Silvestre improvisada até a praça esportiva, a 10 minutos do showmício. 

“No que ele falou isso, foi uma correria em direção ao portão do estádio. Quando o locutor viu que a praça esvaziou um pouquinho, ele avisou: ‘gente, por problemas técnicos, Ivete não poderá realizar o show aqui hoje, mas amanhã a banda X vai fazer uma tarde de autógrafos pra vocês no Zangão”, reproduz Marvin, citando um bar famoso da cidade.

Revolta popular Zangado, injuriado, cego de ódio, os zamuris (como Ivete chama seus fãs) não iam deixar essa frustração passar batida. Mas não mesmo!

Assim que chegou a má notícia no estádio, a galera voltou correndo, no breu noturno, para a frente do palanque.“A essa altura, o candidato já tinha sumido. Aí o povo começou a gritar, jogar lata, garrafa e pedra no palco, e quebraram o palco todo. Lembro que daqui de casa, que fica a uns 10 minutos, dava pra ouvir as pessoas gritando”, reconstrói Talita.Marvin também descreve o cenário dantesco: “A população revoltada com o ‘falso show de Ivete Sangalo’ invadiu o palco, arrancou e estourou todas as bolas, derrubou os instrumentos, queriam bater no locutor. Foi uma correria louca, começaram a tacar pedra, e começou uma briga generalizada”.

A Revolta dos Zamuris foi então tomando conta das ruas, quase ganhando ares de revolução para derrubar o governo. “As pessoas começaram a ir embora, e foram pelas ruas fazendo a maior zuada. Passando na frente do estádio, deram murros e chutes nos portões de ferro, que fazia um barulho gigantesco”, cita Talita, sem esquecer do desespero de quem tava mais perto e, assim como ela, não sabia o que tava acontecendo.

“Lembro que os filhos das minhas vizinhas estavam na rua, e aí uma dessas vizinhas ficou assustada com todo o barulho, saiu aqui na nossa rua desesperada, chamando minha mãe. Saíram as duas de camisola, indo em direção à praça atrás dos filhos”, relata a universitária.

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Conhecida como Cidade Ternura, Conceição da Feira não teve dó do prefeito do balão, que voou lá pra trás na contagem de votos. Chico Guedes acabou eleito, com 39,69% da preferência popular (3.946), em votação apertada contra Val de Maninho, o segundo, com 38,21% (3.799).

O pobi do Serra, infelizmente falecido em 2013 – o que nos impede de saber o que se passou na cabeça dele ao prometer Ivete na campanha –, terminou a corrida eleitoral de 2004 em terceiro, com 2.197 votos (22,1%).

Procuramos a assessoria de Ivete para saber se a cantora lembra dessa história, e se foi de fato procurada para fazer rolar a festa da democracia em Conceição da Feira, naquele ano, mas não houve retorno até o fechamento da edição.