'A sala de aula é um espaço de poder que reverbera opressões de gênero e raça', diz pesquisadora

Para professora da Ufba, fundadora de escola antirracista, é preciso sair do 'piloto automático' do machismo na educação

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  • Thais Borges

Publicado em 7 de agosto de 2021 às 05:10

- Atualizado há um ano

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É preciso refletir como o próprio currículo da formação de docentes fomenta opressões de gênero, raça e classe. É o que diz a professora Bárbara Carine Pinheiro, vice-diretora do Instituto de Química da Ufba e sócia e fundadora da Escola Afro-Brasileira Maria Felipa, referência no Brasil em educação antirracista. 

"A gente é educada para nem perceber violências. A sala de aula é um espaço de poder. Nessa relação, se estabelece um sentimento de liberdade de alguém que se sente autorizado a estabelecer mecanismos de opressão", diz ela. 

Em entrevista ao CORREIO, ela falou sobre temas como o assédio sexual em escolas, como no Ifba; sobre formação de professores e sobre gênero e raça na educação.  A professora Bárbara Carine falou sobre gênero, raça e educação (Foto: Acervo pessoal) Leia mais: Na sala com machistas: como os casos de assédio sexual no Ifba refletem cultura histórica na escola Leia mais: 'Passei meses sem conseguir ir à escola até perder o ano', diz jovem vítima de assédio sexual no Ifba

Confira a entrevista completa a seguir. 

No caso do Ifba, conversamos com estudantes atualmente e também com pessoas que estudaram lá há décadas. De forma geral, elas falam que é uma cultura que vem se perpetuando. O número de mulheres aumentou, mas ainda acontece. Mas não é uma situação exclusiva do Ifba, nem só da educação técnica. Por que a sala de aula ainda é um ambiente tão vulnerável? 

A gente tem uma sociedade complexa em termos de estrutura e essas múltiplas estruturas que compõem a sociedade reverberam as dinâmicas macro da sociedade. A gente tem uma sociedade atravessada por opressões de gênero, raça, sexualidade, classe e essas opressões penetram nesses complexos sociais, seja educacional, na política, na saúde. Nos diferentes espaços de poder, a gente vai ter reverberações dessas violências. 

Não é só o Ifba. Em todos os espaços que vivi, esses mecanismos de poder opressores se estabeleciam. É algo que a gente precisa lidar. Por isso, a gente precisa pensar nas secretarias dentro das instituições, nas pró-reitorias, nos movimentos dentro das instituições que enfrentam diretamente a questão a partir de uma agenda, de uma pauta local. O Ifba tem seus mecanismos, a Ufba tem seus mecanismos no sentido não da instituição, mas das pessoas que compõem a instituição. A gente compõe grupos de militância, redes de apoio. A gente pressiona a administração central para que pense numa pró-reitoria específica para além das ações afirmativas para pensar as estruturas de opressão que somos atravessadas interseccionalmente nesses espaços.Tem que pensar como o currículo fomenta essas opressões, além do próprio processo de contratação, seleção e como podemos estar atenta às dinâmicas internas.  As mulheres hoje são maioria nos cursos de graduação. A gente pode dizer isso até nos cursos de exatas como Química. Mas quando pensamos nos topos da carreira, não são as mulheres. Quando pensamos nas bolsas de produtividade do CNPq, ainda estamos longe.  Quando olhamos docentes de programas de pós-graduação, os laureados (com o prêmio) Nobel, diretoras e reitoras, ainda estamos longe.Tem uma bolha que a gente fura mas tem um dique de contenção que nos limita até certo ponto. Mesmo aumentando quantitativamente, o poder permanece androcêntrico, na mão de homens brancos na perspectiva heteronormativa.Quando Simone de Beauvoir fala de segundo sexo, ela diz que a mulher é o outro. O negro é o outro, as pessoas trans são o outro. Se a representação do humano é esse homem branco cis hetero, pensando dentro do escopo da ocidentalidade, é ele que deve dirigir a sociedade, mesmo numa cidade onde o que menos tem é homem branco. Cerca de 6% da população de Salvador é de homem branco. É muito pouco, mas eles se multiplicam como gremlis. Eles estão nas chefias das mídias, nas diretorias, na cena cultural da cidade. 

A gente é educada para nem perceber violências. A sala de aula é um espaço de poder. Ali tem uma relação de alguém que majoritariamente fala e pessoas que majoritariamente escutam. Mesmo quando a gente pensa numa relação de troca, há uma relação de poder entre professores e estudantes. Nessa relação se estabelece um sentimento de liberdade de alguém que se sente autorizado a estabelecer diversos mecanismos de opressão. 

O assédio que acontece numa escola tradicional, numa escola de ensino técnico ou na universidade é a mesma coisa?

A violência está em todos os espaços, mas obviamente ela é sofisticada nos diferentes segmentos, ela pode se diferenciar. A favela é majoritariamente preta. Tem como imaginar que não tem racismo? Tem, mas é diferente de um prédio de classe média com só uma família negra vivendo ali.

Tem racismo na periferia porque a sociedade a lê como violência, uma sociedade com crianças que não tem direito à infância, pessoas destituídas de moradia, saúde, e que o estado não se preocupa com essas pessoas. É uma manifestação de racismo diferente daquela de você receber uma porta na cara em um bairro de classe média porque as pessoas acham que você não mora ali. As opressões se ajustam a uma determinada realidade. 

Quando a gente pensa em machismo e misoginia nessas instâncias de ensino médio, técnico e superior, estamos falando em esferas distintas de poder. Quanto mais a gente vai caminhando na escala de um conhecimento mais restrito, mais isso se manifesta frontalmente com essas mulheres. O Cefet, ou Ifba, é historicamente técnico.Essas funções científico-tecnológicas historicamente foram mais ligadas aos homens. Eu, enquanto química, só estudei Marie Curie, e uma cacetada de homem. Na história única que nos é contada, há necessidade de colocar os homens como suprassumo. A ciência e a tecnologia fomentam o capitalismo. O suprassumo do capitalismo está na mão da ciência e da tecnologia. São elas que impulsionam cotidianamente milhares de coisas que estão sendo feitas no mundo. É um espaço grandioso de poder e essas opressões vão se manter. O Ifba tem essa característica, essa peculiaridade de ter uma dimensão científica-tecnológica forte, historicamente negada às mulheres tidas como menos inteligentes, menos capazes, mais emotivas. Os homens são tidos como racionais. Se a ciência é o lugar do homem, então bota a mulher como enfermeira, bota na educação infantil, bota em determinados locais. Mas na engenharia, na tecnologia, na ciência, não. É o espaço da razão. 

Na sua avaliação, é preciso mudar algo na formação de professores e professoras também? 

Sim, e eu faço isso nos meus componentes curriculares, tanto enquanto sócia e dealizadora da Escola Maria Felipa quanto como professora e pesquisadora na Ufba. Tento pensar como esse espaço importantíssimo na educação é formador de subjetividade. Não acredito numa personalidade dada geneticamente, do tipo que puxou à mãe, ao pai. Acredito que a gente é forjado a partir de construtos socioculturais. O papel da escola é fazer com que a gente não invente a roda a cada geração, porque a gente se apropria de uma série de teoremas como leis de newton, teorema do triângulo retângulo. Esse é o papel macro. E o papel micro no campo das individualidades é formar subjetividades. A escola tem responsabilidade. Uma professora ou professor que está ali tem responsabilidade absurda na formação desse sujeito. Viver é um ato político.Na minha sala é assim. Se só os homens estão falando, digo que agora é hora das mulheres falarem. Vamos observando mecanismos. Se alguém diz ‘o autor Pinheiro’, não, não é o autor. É Bárbara Pinheiro, então é a autora. São coisas mínimas para chamar os estudantes e as estudantes para a consciência de que a gente está num piloto automático do machismo e que a gente não pode simplesmente seguir nele. 

O Ifba tem muitos professores que não são licenciados. no caso, tem bacharelados em áreas técnicas, ao invés de licenciatura. Isso teria alguma relação com essa cultura? O ensino técnico seria mais propício para situações assim por falta de didática?

Uma questão é a formação de professores e professoras, que ainda é deficiente. No campo da relações étnico-raciais, tem só dois anos que passou a tem disciplina voltada para isso nos cursos de licenciatura na Faced (Faculdade de Educação da Ufba). Entretanto, tem uma lei de 2003 que estabelece a obrigatoriedade do ensino. Só há dois anos na Ufba, na cidade mais negra, a gente consegue. Imagine nos outros cursos de formação no Brasil. 

Disciplina de gênero é raridade. Na Ufba, a gente tem o Neim (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher) e o Neim é constantemente ridicularizado na sociedade.  ‘Para quê isso? Gastar dinheiro público com isso?’. Precisamos ir além da didática. Uma disciplina de didática não vai resolver a questão de uma pessoa que não tem vocação para docência. 

A outra questão tende para o fim. O Ifba, como tem educação básica, pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) obriga que o docente tenha licenciatura para ensinar na educação básica. Antigamente poderia ter um professor dentista, farmacêutico, dando aula de química. A LDB disse que não pode mais. O Ifba já se modernizou, todos os concursos são para licenciatura. Já tive estudante de doutorado que teve voltar para fazer licenciatura para fazer concurso no Ifba. Ainda tem pessoas ainda com formação tecnicista. Mas o Ifba tende a resolver essa questão. 

As universidades ainda não têm como resolver, porque é nível superior. No máximo, as pessoas fazem componente de tirocínio docente no doutorado, mas não têm formação humanística nenhuma, não têm noção do que é lidar com pessoas. Às vezes, a pessoa tem noção de como lidar com outras variáveis, controlar um laboratório, mas não sabe controlar um sistema com 50 pessoas, com cada uma sendo um universo e vindo de uma realidade diferente. 

Um aspecto nos chamou atenção nos casos do Ifba, segundo o comitê permanente contra o assédio criado no campus Salvador: o fato de que as estudantes negras, assim como as funcionárias terceirizadas negras, são mais vítimas desses assédios. Além disso,são vítimas de assédios diferentes das estudantes brancas, porque são atos que constantemente envolvem toque. Por que isso acontece? 

A interseccionalidade é uma categoria analítica sociopolítica que compreende que essas avenidas identitárias se cruzam em determinadas encruzilhadas de opressões. Essas opressões de gênero se somatizam às questões de raça, da sexualidade. Ela (a mulher negra) não é apenas o outro do homem, ela é o outro do outro como diz (a teórica e escritora) Grada Kilomba. É o outro por ser mulher e o outro por ser negra. Essas avenidas se somatizam e aí cito intelectuais como Carla Akotirene, Kimberlé Crenshaw, Angela Davis, Lélia Gonzalez, bell hooks*. 

A opressão do homem em relação à mulher branca tem uma vinculação a uma dinâmica de poder de misoginia, de mostrar que você é menor, que você é rebaixada socialmente, que você é fraca em diversas esferas e que ele tem um poder sobre você. Quando a gente tem a questão de raça, vem o entendimento do pertencimento deste próprio corpo.

Historicamente, o escravismo destituiu as pessoas negras da sensação de pertencimento. Pertencíamos ao senhor, à sinhá. Nosso corpo era o pertencimento do outro. Dentro de uma sociedade altamente colonialista, essas estratégias ainda se reverberam, tanto pela hiperssexualização dessa mulher negra como porque, se não somos humanos, não performamos as emoções. Há um entendimento que animais apenas ‘são’.Se entende que nós também apenas ‘somos’ fisicamente. E apenas ‘sendo’ homens e mulheres pretas são hiperssexualizados, são apenas um corpo que só serve para trabalhos corporais, envolvendo trabalhos sexuais. Dentro do entendimento colonialista, um corpo que não se pertence, que não se cabe. Tem essa questão que as mulheres negras são frequentemente tocadas, mas os abusos são em dimensões distintas, de que ela gosta desse processo de hiperssexualização, de que é isso que ela quer, de que com ela precisa ser agressivo porque é isso que ela precisa. Como é possível pensar uma educação mais livre das amarras do racismo e do sexismo? Seria diferente em escolas e universidades? 

As pessoas têm um entendimento meio burro das coisas. Elas acham que falar disso é ter é política na escola. Não é política, é formação humana, pelo respeito do outro, pelo limite do corpo, para não invadir. Onde a gente aprende isso? A gente aprende isso ao longo da vida  e a escola faz parte da vida. Hoje na educação infantil, tem o trabalho da sinaleira do corpo para as crianças pintarem partes do corpo onde o toque incomoda.

Isso é educação sexual. Mas alguns imbecis vão dizer que a escola está ensinando mamadeira de piroca. A escola deveria ensinar a criança como se defender, como expressar seus desconfortos quando alguém lhe toca. Isso é um patamar de educação no corpo. 

Mas não é o patamar que vamos trabalhar no nível superior. Na Maria Felipa, que é educação infantil, por exemplo, trabalhamos a prática antirracista sem nunca falar de racismo na escola. A gente fala de potência na escola, que a humanidade surgiu em África, fala dos povos originários. A gente tem que falar de beleza. É infância. é cuidado, é formar a subjetividade do outro.

No nível superior, tem que falar de denúncia, de racismo estrutural, tem que pensar nos níveis de enfrentamento ao racismo. Mas é importante também as pessoas adultas saberem que tudo não surgiu na Grécia. É importante elas pensarem na sociedade que estão inseridas.A escola precisa cuidar dessas questões.

*A grafia de bell hooks, pseudônimo da professora e feminista negra estadunidense Gloria Jean Watkins, é em letras minúsculas por um desejo da autora de que o foco de seus escritos sejam o conteúdo, não a pessoa.