A temperança

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  • Da Redação

Publicado em 15 de agosto de 2021 às 07:03

- Atualizado há um ano

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Mabel nos conta sobre o dia em que um de seus irmãos teria ligado para sua mãe - como era de costume entre eles - para tirar dúvidas sobre uma receita em execução.

- Mas mãe, e o sal?”

- Meu filho, o sal... o sal é um dom.

Naquele momento Mabel encontrou o título do seu livro, enquanto eu, algumas semanas após o seu lançamento, encontrava uma resposta para quase tudo na vida.

Era a carta XIIII do Tarô de Marselha, que àquela época eu tanto queria para mim e hoje já posso dizer que, quando nada, entrei no campo. Da Temperança.

Aquela pitada que ao menor excesso ou falta, tanto pode entornar o caldo, quanto tornar insossa a vida experiência é, de fato, um dom.

Trazendo para a cozinha, quantas vezes eu havia precisado desesperadamente dessa frase tão sábia quando leitoras, tadinhas, diante das minhas receitas invariavelmente intuitivas,  travavam diante daquele abstrato “sal à gosto” e ao me pedirem para ser mais específica quem travava era eu.

Como é que essa frase tão salvadora não havia me ocorrido? Porque eu ainda não tenho a sabedoria (e poesia) das nossas mais velhas, respondo.

O que nos diz Dona Canô em primeiro e segundo plano com essa frase que fala tanto sobre a vida? Qual a quintessência da pitada de sal?

Na cozinha eu diria que esse “dom do sal” derruba, sem querer, é claro, as fichas técnicas, e exalta a intuição como se nenhum outro caminho houvesse para uma cozinheira sincera. Propõe abertura dos sentidos, entrega, consciência, o conhecimento sobre a natureza e o sal próprio de cada alimento, fundamental para acertar na medida; o dom do sal é exercício de bom senso, silêncio, solidão, alquimia e quase prece; tudo isso no exato momento de medir a pitada fatal. 

Traduzindo esse dom para a cozinha técnica e profissional, por que a frase derruba a ficha? Mas antes, para quem não sabe, ficha técnica é a receita de um prato escrita com rigor de bula, adotada pelos restaurantes profissionais para garantir o mesmo padrão toda vez que a receita for executada, independente de quem a execute. Porque nas cozinhas profissionais só há uma assinatura, o resto é execução prática. Nada errado, ao contrário! As fichas técnicas são fundamentais nos restaurantes tanto para garantir uma execução perfeita quanto pela otimização de tempo (já pensou como seria ensinar as receitas de boca para cada cozinheira ou assistente que passe por um restaurante?). 

MAS, há variantes que nenhuma ficha técnica é capaz de prever, a não ser que estejamos falando de comida sintética. Por mais que os restaurantes tentem manter os mesmos fornecedores, e isso nem sempre é possível, a terra muda de gosto. Tanto de uma microrregião para outra logo ali vizinha, quanto de uma estação para a outra dentro da mesma região. Como garantir que a salga do fumeiro de Maragojipe será sempre a mesma; que o caju esse ano não esteja tão travoso; que a chuva não tenha encharcado demais o feijão e ele não aguente o mesmo tempo de pressão; que o agrião venha hidropônico essa semana, e que o salmão não tenha sido adulterado? De nada vai adiantar a medida exata de sal da ficha técnica se vamos precisar corrigir a acidez do molho de tomate, entende? 

Só a percepção, a sabedoria e o bom senso vão poder dizer “quanto de sal”.

Traga isso para a vida e perceba o tanto de coisa que aquela aparentemente frágil senhorinha nos fala sobre a vida nas entrelinhas de uma receita de frigideira de maturi.

É sobre conexão com o Divino; sobre janelas abertas para o desconhecido e intuição, a melhor medida para o sal.