A terra treme e não é de hoje: primeiro terremoto na Bahia tem quase 300 anos

CORREIO fez levantamento exclusivo com pesquisadores, em artigos científicos e recortes de jornais

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  • Edvan Lessa

Publicado em 11 de outubro de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional

“Assustador estrondo subterrâneo, seguido por um tremor que durou ‘o espaço de uma Ave Maria’”. Essa é a descrição de um dos mais antigos terremotos dos quais se tem registro no Brasil, segundo o geólogo Alberto Veloso, pesquisador reconhecido por ir a fundo na história e descobrir detalhes esquecidos sobre tremores.

A descrição compartilhada por ele, em um vídeo do seu canal no YouTube, se refere a um abalo de 2.8 de magnitude sentido em Salvador e em Itaparica, entre 8 e 9 horas da manhã do dia 4 de janeiro de 1724 - há quase 300 anos. “Não dá para afirmar que tenha sido o tremor mais antigo conhecido na Bahia, mas certamente não foi o do Brasil”, pondera o geólogo. Cientistas falam de outro tremor em Salvador, em 1720, mas não se conhece provas sobre ele. Mensário do Arquivo Nacional (RJ), 1978 (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) Autor do livro “O terremoto que mexeu com o Brasil”, Veloso se vale da ciência, como também dos jornais antigos, para provar que não há nada de novo neste mundo quando o assunto é tremor de terra. Muito do que é conhecido sobre o passado dos terremotos baianos, ele reconhece, se deve ao esforço de Theodoro Sampaio (1855 – 1937), engenheiro, geógrafo e historiador, natural de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano.

Foi ele que, em 1899, publicou um mapa com detalhes do tremor ocorrido, em Salvador, em 1724 - para isso contou com relatos de ‘sismonautas’, termo que, mais tarde, seria usado para designar quem sente os tremores e os relata. “Por não contar com sismógrafos, o engenheiro criou uma rede de observadores que enviava notícias sobre a ocorrência de sismos. Com tais informações, conseguia estimar o grau de intensidade sísmica dos abalos, ou seja, os efeitos percebidos pelas pessoas e eventuais danos produzidos”, explica Veloso.

Dados históricos do Centro de Sismologia da Universidade de São Paulo (USP) indicam, por exemplo, que em Salvador também teria ocorrido tsunamis no ano de 1666. Infelizmente, não há detalhes. Por isso, não se pode afirmar que o tsunami teve relação com algum abalo de terra - nem se ele de fato ocorreu.  Correio Paulistano (SP), Quinta-feira, 4 de dezembro de 1919(Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)   Recortes de jornais Embora o primeiro tremor tenha ocorrido por aqui há quase trezentos anos, faz menos de um século que os primeiros sismógrafos foram instalados no país - somente na década de 1970. Significa dizer que, antes disso, a magnitude era medida por equivalência. Os relatos de quem viveu os abalos e as publicações em jornais da época são as informações usadas pelos pesquisadores.“Os relatos e registros jornalísticos são fundamentais, especialmente quando não temos ferramentas de obtenção de dados que permitam monitorar todo o território”, avalia Simone Cruz, presidente da Sociedade Brasileira de Geologia (SBG). A geóloga pondera, no entanto, que um terremoto pode ocorrer em áreas habitadas e não habitadas e que se deve observar mais do que somente os relatos. Diário de Pernambuco (PE), Sexta-feira, 28 de novembro de 1919(Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)   Por outro lado, o pesquisador da USP Marcelo Assumpção, referência no estudo sobre terremotos históricos no país, argumenta que quando há informação detalhada dos efeitos de um tremor em várias cidades, às vezes se pode determinar melhor um epicentro, se comparado aos dados fornecidos por estações sismográficas muito distantes do epicentro. Um bom exemplo é o sismo de Amargosa, segundo ele. “As informações dos ‘sismonautas’, ou seja, das pessoas que sentiram o sismo e enviaram relatos pra USP, e dos jornais, permitiu estimar um epicentro mais preciso do que o epicentro instrumental com estações muito longe”, expõe.

Em 1915, um sismo de 4.0 de magnitude teve epicentro no interior da Baía de Todos os Santos e atingiu diversas cidades baianas, segundo o pesquisador Alberto Veloso.“Sampaio contatou o Observatório no Rio de Janeiro que informou não ter registrado o sismo”, informa Veloso.Dentre os efeitos do tremor, ele destaca rachaduras em paredes na cidade de Saubara, onde pessoas saíram correndo de suas casas, estragos na capela da Ilha das Flores e um provável desabamento de casa em Candeias. Diário de Pernambuco (PE), Sexta-feira, 4 de março de 1955(Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)   Um levantamento exclusivo feito pelo CORREIO no acervo de jornais antigos da Biblioteca Nacional revelou que muitos relatos estão associados às cidades Salvador e de Cachoeira, no Recôncavo. Uma das 11 notícias foi publicada no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, a mais de 1,6 mil quilômetros do local onde os moradores sentiram a terra tremer, e onde se concentrava a grande imprensa da época.“Foi sentido aqui um forte tremor de terra, que durou durante dois segundos. Esse mesmo phenomeno foi sentido na vizinha cidade de Cachoeira, onde a população está impressionada”, diz trecho de jornal da época.Embora curtos, os recortes de jornal indicam, por exemplo, os locais: uma notícia de 1919 fala de um forte tremor no arrabalde de Amaralina. Esses registros precisam ser analisados com cuidado, mas são valiosos, afirma o professor Marcelo Assumpção, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG/USP). Ele apontou que um dos recortes obtidos durante a apuração desta reportagem, de 8 de maio de 1910, não constava nos registros da universidade.

Raro, o material extraído do Correio de Petropolis tem teor cômico. “Houve um tremor de terra na Bahia. E um facto raro na nossa calma geologica. No Brazil a 'terra' só treme quando o sr. Land faz discurso”, diz a notícia publicada em jornal da época, provavelmente se referindo ao coronel José Land, vereador da cidade. Correio de Petropolis (RJ), 8 de maio de 1910 (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)   Haja tremor O banco de dados da USP, combinado com dados da Rede Sismográfica Brasileira (RSBR), de jornais antigos e de um artigo científico trazem alguns detalhes de 180 sismos. Utilizando software, pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Federal da Bahia (Igeo/Ufba), da Universidade Estadual de Feira De Santana (Uefs) e da Sociedade Brasileira de Geologia (SBG) concluíram que o total é 373 tremores de 1899 até 15 de setembro de 2020. Mas, o número já cresceu: só de setembro a outubro, na cidade de Amargosa, a líder, foram 240 eventos.

Ao menos 60 municípios da Bahia e 15 outras áreas em que não se tem clara identificação do município registraram tremores. Em pelo menos 40 deles, a magnitude foi ‘medida’ por equivalência. “Quando o dado é histórico, é feita uma equivalência com a escala Richter, por associação aos efeitos sentidos”, afirma o geólogo Valter Sobrinho, um dos autores do estudo em andamento e que também é gerente de Geologia e Recursos Minerais da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM).

Chamam atenção os terremotos ocorridos em 1915, 1917 e 1919, cujos detalhes, segundo o professor Alberto Veloso, estão em três artigos publicados por Theodoro Sampaio.“Em Rio Fundo [município de Terra Nova], casas abalaram, paredes racharam, telhas caíram, relógios pararam, houve muito choro, crises nervosas e até aborto se deu, segundo o padre Liberato Bittencourt”, detalha Veloso, sobre sequência sísmica que durou mais de seis meses, em 1917.Um novo enxame sísmico ocorreu em 1919. Na região de Monte Recôncavo, em São Francisco do Conde, teriam havido estragos consideráveis. “Esse tremor foi sentido em Salvador e teve grande repercussão na capital. O Instituto Histórico e Geográfico da Bahia (IHGB) criou uma comissão científica para inspecionar a área mais afetada e Sampaio fez parte dela”, completa. Correio da Manhã (RJ), Sábado, 10 de novembro de 1917(Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)   A região de onde Sampaio veio, inclusive, é considerada propensa a tremores e uma das áreas mais ativas do Brasil, segundo a Rede Sismográfica Brasileira (RSBR). Do total de registros analisados pelo geólogo Valter Sobrinho e outros pesquisadores baianos, apenas oito sismos superaram os 4 graus da escala Richter – que mede a magnitude do tremor –, mas nenhum ultrapassou os 5 graus. Se fosse o caso, o estado da Bahia seria obrigado a ter construções anti-sismos, segundo a norma brasileira para este tipo de situação, a NBR 15421. O passado, o presente e a ciência Informações do período colonial, no geral, são limitadas e, nem sempre, muito confiáveis, alerta o pesquisador Alberto Veloso. Apesar disso, ele conhece  pormenores de uma história desse tempo, publicada no livro “Tremeu a Europa e o Brasil também”, escrito pelo geólogo.

Segundo o pesquisador, o rei D. José I passou a viver em barracas após um terremoto atingir Lisboa em 1755.“A capital foi semi-destruída e o rei só não morreu - o seu palácio desmoronou e incendiou - porque na hora do tremor encontrava-se em seu palácio de campo”, detalha.Membros da corte, embaixadores e religiosos também teriam passado a viver em barracas, enquanto Lisboa era reconstruída. O historiador português Nuno Gonçalo Monteiro afirma que Dom José viveu em tendas por 17 anos.

O medo diante destes episódios ao longo dos séculos é compreensível, principalmente porque, nas aulas de Geografia, os estudantes aprendem que terremotos são pouco frequentes no Brasil. Essa é uma das razões para que o fenômeno não tão incomum ainda hoje cause rebuliço por aqui. Quem não se choca nem um pouco com isso são os sismólogos, que buscam compreender como e por que os fenômenos ocorrem.

Um desses pesquisadores é Eduardo Menezes, do Laboratório de Sismologia (LabSis) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Segundo ele, já há um estudo em andamento com dados obtidos a partir das nove estações sismológicas baianas, instaladas no dia 5 de setembro em Amargosa, Brejões, Elísio Medrado, Laje, Mutuípe, São Miguel das Matas e Ubaíra, depois dos. De 31 de agosto a 3 de setembro, foram 23 tremores na região. De 5 de setembro a 1º de outubro, os sismógrafos no captaram mais 240 eventos de baixa intensidade.

Com os novos sismógrafos, a Bahia passa a ter 12 aparelhos, mas somente três deles são fixos. O primeiro sismógrafo foi instalado na Bahia em 2012, em Ponto Novo. Depois, em Cabaceiras do Paraguaçu e Itapé. “A previsão do monitoramento para este estudo é de dois meses, podendo ou não haver continuidade do mesmo”, destaca Menezes.“Estamos vendo com a Defesa Civil do estado a viabilidade de que pelo menos uma estação continue na região, como também a permanência da rede por mais tempo. Isso vai depender da evolução temporal dos tremores”, completa o pesquisador do LabSis.“É preciso que ocorra investimento em pesquisa científica para termos uma maior precisão no conhecimento sobre os sismos, seja sobre suas causas, seja sobre suas formas de ocorrência”, avalia Simone Cruz, professora do Igeo/Ufba. Segundo ela, a implantação da Rede  Sismográfica Brasileira, em 2005, foi determinante para o que sabe sobre  o tema.

“A gente precisa de cientista e técnico para trabalhar. Equipamento sozinho não funciona. Todas as nossas instituições estão sofrendo e a gente precisa mantê-las funcionando”, disse o pesquisador Sérgio Fontes, da UnB.

Tremores provocados por mineração Os dados do Centro de Sismologia da USP apontam que atividades de mineração podem causar tremores e só é possível detectá-los graças aos sismógrafos. Na Bahia, isso aconteceu nos municípios de Jaguarari, Centro-Norte do estado, e em Ipiaú, no sudoeste baiano, em 2015.

“Sobre as mineradoras, quando acontece algum sismo, que na verdade é uma detonação, as formas de onda são parecidas [com os tremores de terra] no sismograma. Mas, essas detonações ocorrem em horários específicos e a gente consegue discerni-las”, explica Bruno Collaço, sismólogo da USP.

Apesar da evidência de tremores decorrentes de explosões, Collaço afirma que esse não é um grande problema na Bahia, se comparado a estados como Pará, São Paulo e Minas Gerais, onde explosões causam sismos de maior impacto.

Tremores de terra na história da Bahia1720: Ano em que foi registrado o primeiro terremoto da Bahia, em Salvador. Não há informação sobre a Magnitude. Outro tremor foi registrado na capital em 1724. 1899: Ano em que ocorreu o primeiro sismo em Amargosa, com escala 3.5 de Magnitude. Até 2019, outros tremores haviam atingido a cidade em 2002, 2018 e 2019. 1905: Senhor do Bonfim e Xique-Xique, no semiárido, registraram tremores com 4.8 e 4.7 de magnitude, respectivamente, os maiores até hoje. Esses foram, aliás, os que mais se aproximaram de 5.0, o que obrigaria a Bahia a ter normas anti-sismos para obras. 1911: Itaparica registrou um terremoto de escala 4.4 que atingiu uma área de 700 km². Outro tremor superior ao de Amargosa, em 2020, ocorreu em Rio Fundo, distrito de Terra Nova, no sertão baiano, em 1917. 1918: O primeiro enxame sísmico é registrado em Rio Fundo. Um ano antes, outros três terremotos atingiram a região, chegando à Magnitude 4.3. 1919: Apenas neste ano foi sentido um abalo de terra com escala 4.2, como aconteceu em Amargosa recentememte. O Jornal (RJ), 7 de agosto de 1968 (Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional) CuriosidadesEnxame Sísmico: Entre 1971 e 1978 Ibicaraí, no Litoral Sul, registrou 14 terremotos, nove deles somente 1976, ou seja, um outro enxame sísmico. Em 1992, 14 sismos foram registrados em Mundo Novo. Ambas ocupavam, até agosto, o 1º lugar na posição de sismos. 1899-2019: Na região do Vale do Jiquiriçá, ao menos oito tremores ocorreram entre 1899 e 1999. Entre 2002 e 2019 houve outros 13. Epicentros:  Até 2019, 13 tremores tiveram epicentro em municípios do Recôncavo. O primeiro teria ocorrido em 6 de novembro 1915, segundo informações de Theodoro Sampaio, com magnitude 4.0. Ano mais ativo: 1992 foi o ano mais ativo, com 17 tremores, seguido por 2016, com 14 sismos, e 1976, com 12.  Mineração: Entre 1998 e 2000 e entre 2001 e 2002 Jaguarari, Centro-Norte do estado, registrou diversos abalos de terra induzidos pela atividade mineradora da região. Pedreira: Em 2015, a detonação de uma pedreira em Ipiaú teria ocasionado uma série de sismos que chegaram à escala 2.7. Este ano: Em 2020, sismógrafos registraram 240 eventos na região de Amargosa, mas ainda não significa dizer que seja o ano mais ativo. 120 anos: O Centro de Sismologia da USP documentou cerca de 180 eventos ao longo de 120 anos, em mais de 60 cidades. Cerca de 15 áreas não têm clara identificação do município onde ocorreu o sismo. A Província (PE), Sexta-feira, 19 de dezembro de 1919(Imagem: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional)