A vez que Dom Pedro deu uma de ‘Dono Flor’ e veio com as duas mulheres para Salvador

Coração do imperador, que ‘visitou’ o Brasil dia 7, estava dividido entre Leopoldina e Domitila em 1826. Viagem contribuiu para 'desfecho trágico de casamento', diz autora

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  • Da Redação

Publicado em 18 de setembro de 2022 às 05:01

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Domitila, Dom Pedro e Leopoldina: o triângulo amoroso que agitou o Brasil Império (Imagem: Domínio público) O coração de um plebeu, como eu, costuma pesar cerca de 340 gramas e tem o “tamanho de um punho fechado, dividido em 4 partes: 2 átrios e 2 ventrículos”, segundo o Google. Mas quando se tem sangue azul, pode pesquisar, a coisa muda de figura: o coração do imperador Dom Pedro I, que deu um rolé no Brasil no Bicentenário da Independência, semana passada, hoje pesa 9 quilos – ele e o formol. Quando bateu em Salvador, em 1826, talvez pesasse mais, embora tivesse dividido em apenas duas partes: metade na conta de sua imperatriz consorte, Dona Maria Leopoldina, e a outra parte no punho fechado da amante, Domitila de Castro, a marquesa de Santos.

Conta a historiadora e escritora Isabel Lustosa, na biografia ‘D. Pedro I’, que “a viagem à Bahia foi um marco nas relações entre d. Pedro e Domitila e contribuiu também para o desfecho trágico de seu casamento.” Leopoldina viria a falecer em dezembro daquele ano “jovem, desgastada e triste”, conforme descreveu sua ‘sucessora’ no trono, Amélia de Leuchtenberg.

A carismática arquiduquesa austríaca contava 29 aninhos quando seu destino foi selado, em boa parte por desgosto. Porém, até desembarcar na Baía de Todos-os-Santos, nutria grande esperança de que seu casamento com o ‘Dono Flor’ ganhasse contornos mais amenos, expostos às boas brisas bahienses. Coração de Dom Pedro I foi trazido de Porto, em Portugal, para o Brasil no dia 7 de setembro (Foto: Guilherme Costa Oliveira/ Câmara Municipal do Porto) Obrigada a conviver com a Camila Parker Bowles de Santos, Leopoldina acreditava, a princípio, que a rival não viesse nessa tour, e admitia estar entusiasmada com a trip. No dia 2 de fevereiro, escrevera à artista e historiadora britânica Maria Graham: “Depois de amanhã embarco para a Bahia com o meu amado esposo e minha adorada Maria, que faz as minhas delícias pelo seu excelente caráter e aplicação nos estudos”.

Não esperava que a adorada e cdf Maria da Glória, futura Rainha de Portugal, ainda inocente, pura e besta (7 anos), andaria de mãos dadas pela Cidade da Baía com a inimiga de mainha. “Domitila acompanhava os soberanos nos eventos, despachos e beija-mãos em Salvador e região. Quando passeavam de carruagem, d. Pedro ia guiando, tendo a imperatriz ao seu lado e d. Maria da Glória e Domitila sentadas atrás”, descreve o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti na biografia ‘D. Pedro - A História Não Contada’.

Às ordens Em Salvador, o imperador visitou instalações civis e militares, deu ordens e distribuiu pitos e descomposturas em chefes e encarregados. “Também organizou a construção de um novo cais para o desembarque comercial, evitando atulhar os produtos descarregados dos navios diante do Arsenal da Marinha. (...) Num único dia, chegou a receber mais de seiscentas pessoas em audiência. (...) Mandou construir orfanatos, solicitou a melhoria da faculdade de Medicina com materiais importados da Inglaterra, deu esmolas, puniu e condecorou quem devia”, cita o livro.

Perguntei a Rezzutti se, nessas aparições públicas, com Domitila a tiracolo, a população não se revoltava. “A gente não tem notícia a respeito do público. A gente tem notícia de que quando a Leopoldina morreu, os vidros da casa da Domitila foram apedrejados. Mas, fora isso, não há nenhuma reação do público contra a Domitila. Pelo menos, não há relato”, comentou. 

Mesmo assim, o autor destaca a repercussão negativa da viagem, na qual o imperador dormiu com a amante (por dias enferma e tratada por ele), no Palácio Rio Branco, enquanto a imperatriz e a filha dormiram na vizinha Casa de Relação.“Houve bastante repercussão a respeito da Domitila ir junto para a Bahia. Existe até uma história, que foi relatada pelo embaixador da Áustria [Filipe Leopoldo Wenzel, Barão de Mareschal], de que Dom Pedro chegou, certo dia, no Palácio de São Cristóvão [no Rio], bravo, mostrando o que havia sido afixado nas ruas a respeito dele levar a Domitila junto com eles, dizendo que ele estava levando a mulher para esconder a amante. E aí a Leopoldina ficou impávida, ouvindo ele esbravejar, e respondeu que se fosse verdade, que o melhor era ignorar. E que se fosse mentira, também era melhor fazer o mesmo”, mencionou Rezzutti.O dodói de Titília, como Dom Pedro (Demonão) chamava a amante, foi uma dor de ouvido, conforme o próprio imperador relata em cartas à mãe da marquesa, dona Escolástica, que ficara tomando conta dos filhos dos dois, no Rio. “Já pondo-lhe sinapismos, já deitando-lhe bichas, e com tão feliz resultado que espero, porque já está muito mais aliviada, que amanhã ou depois já sai comigo, a minha senhora e filha no carrinho”, noticiou à sogra secundária.

Má impressão O jornalista e pesquisador Jorge Ramos, diretor do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB), conta que o rolé na Bahia também envolveu visitas a Itaparica e Cachoeira. Mas a chegada a Salvador, em 1826 - que por sinal foi o primeiro solo pisado por Dom Pedro no Brasil, em 1808, ao desembarcar na Ribeira, com a Família Real - também reforçou a má impressão da decisão de viajar ‘em trio’.“Há notícias de que ele humilhou a imperatriz, descendo a escada do navio de braço dado a cada uma das mulheres. Dona Leopoldina do lado direito e Domitila no braço esquerdo. Isso foi a sensação em meio às fofocas… Uns condenando naturalmente, mas, fazer o quê? A Igreja, foco do conservadorismo, chiou, mas na época Igreja e Estado eram ligados umbilicalmente. Alguns poucos padres resmungavam nos sermões e sem citar nomes condenavam ‘homens casados que desfilavam com teúdas e manteúdas, concubinas e amantes…’ Mas, em geral, a sociedade absolveu os pecados do soberano”, explicou à coluna.Com os átrios e os ventrículos embaralhados, o coração de Dom Pedro embarcou para Salvador no Dia de Iemanjá e retornou ao Rio no Dia da Mentira. Chegou como oferenda e foi devolvido pela Rainha, tanto mar.