‘A vida é assim mesmo, pai’: as despedidas e visitas virtuais nas UTIs de coronavírus

Familiares e profissionais de saúde relatam emoções e rotina de tratamento contra covid-19

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  • Fernanda Santana

Publicado em 10 de maio de 2020 às 08:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Hospital da Bahia / Divulgação

"A vida é assim mesmo, pai”, falou Silvia Chen, 41 anos, no ouvido de Jaime Chen, 73, internado em um hospital privado de Salvador. Ela repetia o mantra do próprio idoso, adepto do budismo, diante das intempéries da vida. Um tablet separava os dois - ela, saudável, numa sala; ele, intubado por complicações provocadas pelo coronavírus. Na manhã seguinte, Jaime morreu. O adeus só aconteceu porque unidades de saúde têm possibilitado visitas virtuais para aproximar pacientes de covid-19 e familiares.

Como o coronavírus é altamente contagioso, contra o qual o organismo não possui mecanismos de defesa, a visita física de familiares a parentes contaminados é proibida. Apenas profissionais de saúde circulam entre enfermarias e leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI).“O virtual nos aproximou de forma humana”, contou Silvia, uma semana depois da morte do pai, no dia 16 de abril.Pacientes relatam abandono daqueles que, do lado de fora, ao contrário, vivem a angústia do distanciamento. Começou-se a pensar, então, como amenizar a solidão. A discussão sobre a saúde mental dos internados por covid-19 ganhou coro na última semana, quando um paciente internado no Hospital Espanhol ateou fogo em um colchão do quarto e se jogou do 4º andar da unidade na noite de terça-feira (5). Estava internado com suspeita de coronavírus, descartada em teste dois dias depois. Ele faleceu na sexta (8). Vídeo flagrou momento em que o paciente ateou fogo no colchão e se jogou do quarto andar do Espanhol (Foto: Reprodução) O secretário de Saúde Fábio Villas Boas informou que o paciente pode ter apresentado diminuição da oxigenação do sangue, o que induz, às vezes, a surtos. Como todos ali, ele estava alheio à vida aqui fora.

O isolamento obrigatório das pessoas em tratamento impõe um desafio duplo às equipes de saúde. Confinados, os pacientes ficam mais ansiosos, tristes, apresentam perda de apetite e sentimentos relacionados a perdas. “A questão é a bagagem desse paciente. Ninguém sabe se ele tem uma mala cheia, de reserva para situações difíceis, ou se ele tem só uma bolsinha pequena”, explica Karine Sepúlveda, psicóloga intensivista há mais de 10 anos.

Nunca se sabe qual é “a gota d’água”, o ponto de gatilho daquele paciente, nem mesmo seu histórico psíquico. “Precisamos pensar no valor do afeto. E não digo só com presença de psicólogos, mas de coisas mínimas, como uma palavra, uma janela aberta por onde ele possa ver o mundo lá fora”, completa.

A possibilidade das visitas virtuais surgiu como a única forma segura e capaz de conectar diretamente dois mundos separados por um vírus que, na Bahia, já matou 183 pessoas - segundo o boletim da Secretaria de Saúde do Estado (Sesab) divulgado na noite de sexta-feira. No mesmo dia, o Brasil chegou a 9.897 óbitos e 145 mil casos confirmados, segundo dados do Ministério da Saúde.

Dos infectados por coronavírus, a estimativa de um estudo do Chinese Center for Disease Control and Prevention é que, em média, 5% precisaram de tratamento intensivo no país onde teve início a pandemia. São pessoas totalmente privadas dos contatos mais íntimos. O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde de 2019 mostrou a existência de 1.530 leitos de UTI na Bahia. Por causa da pandemia, em março deste ano já havia praticamente dobrado para 3.035.

Como é uma visita virtual?

Jaime, natural de Taiwan, país do sudeste asiático, estava internado no Hospital Aliança desde 26 de março. Ficou doente quatro dias antes, depois da visita de oito amigos de São Paulo e Fortaleza à casa onde morava com a esposa, Cíntia, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS).

Todos foram contaminados, inclusive Cíntia, que ficou internada, com um quadro mais leve, por uma semana. Os dois, então casados há 40 anos, foram ao hospital sem imaginar que jamais se tocariam de novo. À suspeita de coronavírus, segue-se, por medida de segurança, a reclusão total do paciente. Dos amigos infectados pelo vírus depois da visita, dois morreram. Leitos de UTI para receber pacientes com covid-19 (Foto: Mateus Pereira/GOVBA) Silvia tinha completado duas semanas sem ver ou ouvir o pai quando a unidade de saúde comunicou a nova modalidade de visitas. Ela veio de São Paulo, onde mora, para fazer companhia à mãe, e imaginava como o pai se sentia sem acesso à família, de quem era tão próximo. As visitas virtuais a Jaime, sedado, seguem o mesmo modelo em outros hospitais.

Numa sala reservada dentro do hospital, ficam dois familiares, com equipamento de proteção, como máscara, acompanhados por uma ou duas psicólogas, que seguram um tablet ou smartphone. Na UTI, enfermeiras ou técnicas de enfermagem intensivistas carregam o aparelho de ligação. Quando viu o pai pela primeira vez, Silvia engoliu o choro. Sentia que, mesmo desacordado, ele ouvia tudo. "A gente só queria que ele soubesse que estávamos ali. Queríamos que ele mentalizasse isso, o bem, a tranquilidade”, recorda. Atualmente, os hospitais Aliança, Santa Izabel e da Bahia responderam que adotam as visitas virtuais. Outros três hospitais de grande porte que possuem leitos de covid-19 foram questionados e não responderam.

Nos hospitais Alayde Costa, Roberto Santos e Manoel Victorino, que atendem pelo Sistema Único de Saúde, pacientes também podem ser visitados à distância. 

No Espanhol, onde o incêndio foi provocado, as visitas virtuais começaram a ser realizadas na sexta (8), para minimizar a solidão. Também começaram a ser instaladas televisões nos quartos. "É uma forma importante de engendrar uma rotina, conectar o paciente com o mundo exterior", explica a psicóloga Karine Sepúlverda. 

'Ele viu que não estava esquecido'

No Domingo de Páscoa, no dia 12 de abril, Silvia e a mãe souberam que Jaime sofreu uma parada cardiorrespiratória. Cada paciente recebe, em média, duas visitas semanais. As duas apelaram para o adiantamento do encontro. Às 17h do dia 15, entraram na sala onde a ligação era realizada. Sua mãe pedia que o esposo ficasse tranquilo. Para o budismo, a morte é mais um dos processos cíclicos da existência. Aqueles seriam os últimos momentos do ciclo de Jaime. “Esse foi o momento mais difícil, mas poder estar com ele, pedindo que ele tivesse tranquilidade, fez toda a diferença. Foi reconfortante para todos nós”, lembra Silvia. O novo modelo de visitas é coordenado pelos departamentos de Psicologia dos hospitais, que passaram a pensar ações paliativas para a solidão de pacientes e familiares. Primeiro, aconteciam apenas ligações médicas para atualizar prontuários - como já ocorria em outros casos, para evitar idas desnecessárias aos hospitais. Mas os profissionais percebiam as consequências da ausência nos internados.

Há 12 anos, a psicóloga Alessandra Martins atua em UTI. Nunca viveu nada parecido. Num dos dias de plantão, um paciente relatou, cabisbaixo, o sentimento de abandono, sem ver a esposa e filhos. Depois de primeira visita, a compressão mudou. “Era um paciente que estava lúcido, a gente pode perceber a mudança na feição, mais alegria mesmo. Ele viu que não estava esquecido, que era só uma situação”, conta.

Como os efeitos físicos dos benefícios da visita não podem ser auferidos clinicamente, resta a observação de uma realidade transformada simplesmente pelo direito de estar presente. 

É sabido, no entanto, que ver uma pessoa querida e ouvir palavras de afeto, como ressalta a psicóloga, libera hormônios do prazer, que dão uma sensação - pelo menos mínima - de bem-estar.

Antes de ter acesso aos hospitais, os familiares são triados - os profissionais de saúde verificam se eles estão infectados ou fazem parte de grupos de risco, por exemplo. Algumas unidades possibilitam que o visitante realize a ligação direto de casa. As visitas virtuais nunca haviam sido testadas nessa escala, contaram médicos e psicólogos ouvidos pela reportagem. 

O pai de Luiz Carlos Júnior, 30 anos, está internado desde o dia 29 de março. Foi para o hospital para cuidar de dores nas costas que teriam sido provocadas por uma queda da cama. Feita uma tomografia, a suspeita de coronavírus surgiu. E a confirmação logo veio em um teste. Foi colocado em isolamento imediatamente.

Na primeira visita, o pai não falava, apenas balançava a cabeça em sinal positivo e negativo, ou usava as mãos. Ele não via, nem era visto pela família, há duas semanas.“Veio um choro de alegria e certo alívio. Falamos coisas para fortalecê-lo”, relata Júnior.No dia 25 de abril, o senhor passou o 58º aniversário internado. A família ligou e fizeram um churrasco virtual, conta Júnior. O dia era de comemorar a progressiva melhora do patriarca. “Quando ele sair, a primeira coisa vai ser comemorar de verdade”.  

Não são só aparelhos 

A UTI sempre foi um espaço reservado a pacientes mais graves. As visitas, embora restritivas, eram possíveis e seguiam protocolos. Acontece que, desta vez, o peso do isolamento se impôs com mais força na rotina - dos pacientes e familiares, mas também dos profissionais de saúde, únicas companhias dos internados.

Os médicos, enfermeiros e psicólogos têm readaptado ainda mais o trato com os pacientes. “Precisamos, mais do que nunca, de humanidade, ouvir, falar”, opina Claudio Zollinger, médico intensivista há 30 anos. 

A visita virtual é entendida como necessária ao próprio tratamento contra o coronavírus. Não são só aparelhos. “Medidas de proteção não significam manter distância emocional. Esta simples intervenção pode facilitar a manutenção de vínculos”, afirma a presidente do Departamento de Psicologia da Associação Brasileira de Medicina Intensivista (AMIB), Fernanda Saboya.

A manicure Maria Isabel Ping, 40, acredita que a mãe, Ana Maria, 60, acordou ao ouvir sua voz. A senhora não respondia aos estímulos depois de sofrer uma parada cardiorrespiratória, até que a filha apareceu em vídeo e rogou: “Mãe, acorde”. E ela, sem mais nem menos, acordou.