Adversários na ‘maior briga de WhatsApp da história da Bahia’ usam como arma o pajubá

'Dialeto secreto' dos LGBTs foi criado como resistência e incorporado pela vivência

Publicado em 7 de abril de 2019 às 09:48

- Atualizado há um ano

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[AVISO: Este texto contém palavrão como a porra. Caso seja sensível a isso, siga para a refinada coluna de César Romero].

Ficou aqui? Que bom! Então, vamos lá...

Duas pessoas discutem ferozmente num grupo de WhatsApp, em Salvador. Pelo volume e o tom utilizados, dá pra perceber que acabam de se tornar inimigas mortais. Mas não basta ser um mero mortal para estar por dentro do que está por trás de algumas expressões usadas nessa briga de foice na escuridão do aplicativo. É preciso, aliás, o conhecimento em mais de uma língua/linguagem pra acessar o sentido (ou a falta dele) em algumas áudio-bordoadas. 

Antes de continuar a ler, você vai precisar ouvir o tal bate-boca, cheio de réplicas e tréplicas e quadrúplicas, que traz, em meio ao português informal do Recôncavo, voadoras verbais em pajubá - vocabulário utilizado por parte dos LGBTs, que tem origem no nagô e no iorubá.

Como sei que alguns de vocês vão ficar com preguiça de clicar no youtube aí em cima, já me adiantei na transcrição dos áudios, que vai logo abaixo (e na ordem que prefiro) acompanhada de alguns ligeiros comentários.

Oponente 1: "(...) Eu posso estar até isso tudo que você falou, Léo, mas minha casa nunca foi invadida pela polícia como a sua foi, na Vasco da Gama, viu? Guardadora de cocaína e crack e maconha dentro de sua casa. Sua safada, vagabunda, feia... Viu? Horrorosa! Vá morrer, viado, pra nascer outra vez. Pra ver se vem mais bonitinha... Viu? E a outra quer vir pra obrigação do pai de santo, não pode, porque tá corrida de Salvador. A Ivanete."

[Aqui, só um lamento por Ivanete. Segue…]

Oponente 2: "Ki le wi, ki lo xe. 'Ki ne wan', Ki ne van. Cancela de bater. Morada de receber. Kini ni di o xe! Quem é você, putinha da Mangabeira, sem eira nem beira? Taco, taraco taco; fundo do meu tabaco. Alça do meu sutiã quebrado. Fundo da minha calçola suja de menstruação. Te pego na Avenida Sete, puta, te dou uma baixa; corto você toda de gillette, porque eu sou Driele Larocheli Moretza Demancherry Gutierrez de Pádua com M de Monange, de Monique, de Mercedes, de Marimar, de Maria do Bairro, de Memorial de Maria Moura, de Monique, de Monize, de Mulher. A garota do mega hair. A miudinha da Estrada da Rainha, a cheva do batalhão das bichas, a máquina moedora de pau, morena de três cu: preto, vermelho e azul. Eu sou a única que foi frita no azeite de dendê porque os homens quando comem eles fazem 'aaaaaahhhh...'"

[Esse trecho é sensacional. Cheio de situações e imagens, quase um poema sujo - tem até citação a obra de Rachel de Queiroz e um briôco tricolor que associei, na hora, ao trecho cheio de pernas do Poema de Sete Faces, de Drummond. Segue…] 

Oponente 1: "E você, meu filho, é a imagem da Etiópia. Sua vagabunda da disgraça! Sua escrota! Kolori! 'Mikwi!' Viu? Safada, crackeira. Tá magra assim porque tá no crack, sua vagabunda. Cara da disgraça! Seu percevejo do mato. Sua infeliz, sua excomungada, sua herege, sua desigual das outras! Ói, mãe, não venha, não, que você não é tamanco pro meu pé! Sua forasteira, foragida! Vá, minha filha, se apresentar na Lemos de Brito que você tá devendo à Justiça. Sua vagabunda, ex-detenta, ex-presidiária. Sua cueira! Cu de jornal!"

[Curti o elegante "desigual das outras", mas fiquei intrigado, pensando no que ele quis dizer com "cu de jornal". Seria uma referência ao furo jornalístico? Continua...]

Oponente 2: "Olhe, querida, macumbeira é sua vó e sua família! Viu, puta! Puta do cu baleado. Viu? Pirata do Caribe do fundo do mar. Maldição do Pérola Negra. Quem é você, sua putinha pequena do bocão? Vá se fuder, vá, descarada, horrorosa! (...) Acaçá mi lo de [não entendi essa parte] no cu sem tempero que você é, viu? Maca do HGE. Concha do Nina Rodrigues. Corrimão da Lapa e da Sussuarana.”

[Aqui, acho que temos um vencedor, considerando a diversidade de referências. Só não sei onde é esse corrimão da Sussuarana].

Oponente 1: “Seu Diego, é melhor que você vá tomar no seu cu de acarajé, viu, pai? Acarajé de 1 real de Cajazeiras, pequenininho. Seu cuzinho de acarajé. Cu de apito, cu de lupita, que não aperta e nem apita. Se compreenda viado feio. Esquisito, esquizofrênica, maluca. 'Ma ti ki ni' [trecho intranscrevível] 'Ki mi lo, ki mi lo, ki mi bortolô' [acho que escreve assim]. Vá se fuder, viado!”

Enfim, o fim da briga. Na verdade, a discussão, pelo que essa sequência de áudios dá a entender, envolve outras pessoas (e certamente não é a ordem original da contenda, pois o Oponente 1 se refere, num primeiro momento, a Léo, mas depois, a Diego, que não interessa saber quem são no mundo real - e até mesmo se são reais).

A real que quero mandar, afinal, é referente ao pajubá, coisa que só fui saber que existia por causa da polêmica questão do Enem - meu colega Jorge Gauthier explica melhor.

React aos áudios Antes de continuar, devo confessar que a primeira reação que tive aos áudios (os quais já circulam no WhatsApp há pelo menos dois anos) foi rir. Minha irmã e minha namorada, pelo contrário, não gostaram porque acharam tudo muito pesado, carregado de energias negativas. Ok, concordo, mas me permiti achar graça, especialmente pela inteligência, eloquência e pensamento ultraveloz dos adversários.

A segunda reação foi me perguntar se as frases, nos trechos que aparentavam lançar mão de algum dialeto afro, tinham algum sentido. Fui atrás dessa resposta, primeiro, com um professor de iorubá. Adelson Silva de Brito também se permitiu gargalhar diante do litígio e confirmou que alguns dos termos são, sim, traduzíveis.

Fantasia Ainda assim, segundo o professor, o iorubá dos ade - uma espécie de pai do pajubá, com denominação inspirada em “ade fifo”, termo nagô referente a homossexual -, tem “muita fantasia e pouquíssimo iorubá”.“Eles usam um pseudo iorubá. (...) É, por último, uma mistura de ‘termos litúrgicos iorubá’ usados de forma  embolada. (...) Pra não dizer que não tem nada de iorubá, um dos ade fala ‘ki lo şe’ (‘o que fazer?’), mas ‘ki le wi’ está usado erroneamente”, exemplifica. Adelson lembra que a tradição de usar esses termos, mesmo que de forma equivocada, nasceu nas periferias da capital baiana em meados do século passado. 

“Quem teve a infância nos bairros negros de Salvador, nas décadas de 50 e 60, viu e ouviu pessoas que sabiam rezar em iorubá e fon, como era o caso de Manuel Falefá [pai de santo famoso, que viveu no bairro de São Caetano], que falava iorubá e fon fluentemente, e viu depois muita gente que não deu o mesmo valor ou não teve como aprender, começar a arremedar”, observa.

Segundo professor Adelson, algumas frases podem ser assim traduzidas:Ki lo xe? = O que fazer? Ki le wi? = O que dizer? Ki le van = (Não é iorubá) Kini ni di o xe? = O que é que você constrói? / Você serve pra quê? Kolori = Maluco(a), louco(a); pessoa sem noção. “É uma adaptação inventada pelo povo de candomblé. Eles pensam estar dizendo que a pessoa não tem cabeça, não tem orixá na cabeça” Mikwi = (Não é iorubá)  Acaça mi lode = (Não tem sentido) “É muita maluquice. É só pra dizer que o outro ade não entende nada”, diz ele, entrando no aspecto psicológico da disputa.

É brincadeira Mas para além de corrigir os brigões virtuais, o professor Adelson Silva de Brito também faz uma ponderação bastante importante. “O que o pessoal denomina de pajubá não é usado pelo povo de santo. É uma espécie de dialeto usado pelas comunidades LGBT, uma mistura amorfa de termos de várias línguas africanas, e não tem como base a língua iorubá, nem tem estrutura léxica. O pajubá é uma brincadeira”, destaca o professor da língua africana, que também é Ogan do Terreiro Jeje Kwe Vodun Zo, no Curuzu.

Apesar da crítica ao pajubá - que deu cria aos livros “Aurélia, A Dicionária da Língua Afiada”, de Angelo Vip e Fred Libi, e “Linguagens pajubeyras: re(ex)sistência cultural e subversão da heteronormatividade”, de Carlos Henrique Lucas Lima, professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), de quem não consegui o contato -, o professor Adelson talvez tenha ajudado, mesmo de bem longe daqui, a incorporar alguns termos a esse vocabulário.

“Eu morei no Japão de 1991 a 2006. De 1996 a 2003 eu tive bar e discoteca lá. Nas tardes de domingo, muitos brasileiros LGBT me procuravam para consultar termos iorubá para incorporar ao jargão LGBT. Eu só esclarecia as dúvidas”, conclui, discordando da minha observação.

Origens O primeiro registro documental do pajubá é de 1995, com o livro “Diálogo de Bonecas”, organizado por Jovana Baby, então presidente da extinta Associação de Travestis e Liberados (Astral) do Rio de Janeiro.

No entanto, assim como o iorubá dos ade, a gênese provável do pajubá é a década de 60, neste caso como forma de resistência e no contexto da ditadura militar. Mas o que levou os gays (as lésbicas em menor escala) a elegerem as línguas utilizadas nas religiões afro para compor seu ‘dialeto secreto’?

A resposta - e isso é uma pergunta - estaria no fato de o candomblé e a umbanda, por exemplo, serem religiões mais acolhedoras aos homossexuais?

Como a questão envolve sexualidade, fui indicado pela colega Carmen Vasconcelos, jornalista do axé, a buscar um terreiro de Exu, orixá mais associado a essas questões. A busca por essa fonte era importante porque, me alertou ela, um líder religioso mais ligado a outro orixá poderia estar “contaminado” com a ideologia e moral cristã, e não era isso que eu procurava.

Encontrei algumas respostas com o babalorixá Rychelmy Imbirida, do terreiro Terreiro Ilê Axé Oludumare, em Camaçari. Ele afirma que a questão da homossexualidade, “mesmo dentro do espaço religioso, é uma característica muito profunda historicamente”. “A homossexualidade tem uma tendência ao mágico, uma tendência a ser mais aberto, talvez ser mais sensível às questões da espiritualidade. Quando se trata da questão da religião afro, isso tem um apelo maior porque é uma religião de estética, com muitas cores... Você tem plumas e paetês, tem brilho, você tem a cozinha, então, tem todo um processo visual, ritualístico, que talvez tenha dado uma certa liberdade a vivenciar um sagrado sem tantas recriminações”, analisa ele. Para Imbiriba, a assimilação de “certas palavras ou colocações de origem banto, de origem iorubá, se tornou uma realidade devido à vivência de algumas dessas pessoas, que levaram isso para o seu dia a dia”.

“As travestis que levaram isso pra a rua, pra a noite, e isso acabou virando algo corriqueiro e particular. E eu acho que é uma realidade dentro desse contexto, de se falar, até mesmo de querer camuflar alguma coisa que possa estar sendo falada e a pessoa não queira deixar claro, numa linguagem bem própria que só entende mesmo quem vivencia aquele grupo”, acrescenta.

Resistência e vivência Mais que acolhimento e pertencimento, outro aspecto que motiva essa aproximação e assimilação é a resistência. “Se temos uma sociedade homofóbica, que recrimina um grupo que está num nível de perigo muito grande, então, eles vão usar palavras para se referir, por exemplo, à polícia como ‘zalibão’ ou ‘zoreis’, aos marginais como ‘mavambos’. Enfim, tem todo um processo de linguagem que camufla uma informação real e que ali está subentendida. Ali fica claro que precisa ter um cuidado, um processo de resistência mesmo, também dentro desses guetos, que se perpetuaram. (O pajubá) é uma linguagem que funcionou e não sei se hoje seria somente uma questão mais de resistência, mas uma questão mesmo cultural, de assimilação, de vivência”, finaliza.