Afinal, ‘dar baratino’ no parceiro é empoderamento?

CORREIO explica bastidores de matéria sobre vídeo viral de Ray Baratino e convida para debate sobre machismo e feminismo

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  • Hilza Cordeiro

Publicado em 2 de agosto de 2020 às 07:00

- Atualizado há um ano

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Antes de ser matéria, a internet já tinha transformado ela em fenômeno. A história por trás do vídeo viral de Ray Baratino, a moça laurofreitense que aparece dançando um pagodão enquanto dá um migué num rapaz, foi o conteúdo mais acessado do último final de semana no site do CORREIO. Publicado na coluna Baianidades de domingo, o perfil escrito sobre a moça gerou um debate e dividiu opiniões quanto ao uso da palavra empoderamento no texto, além de uma série de outras críticas. O jornal, então, se propôs a explicar os bastidores jornalísticos e ouvir leitores, pesquisadores e militantes feministas sobre o termo.

Produtora da GloboNews em São Paulo, a jornalista baiana Milena Teixeira viu o vídeo de Ray tomando grande alcance e sugeriu ao nosso colunista João Gabriel Galdea que fosse atrás de conhecer melhor quem era aquela moça desinibida. “Vi o vídeo pela primeira vez no Twitter e achei engraçado, vi que era a cara de Salvador. Ela é muito parecida com as mulheres do meu bairro, desses nossos lugares mais populares. Pensei que deveria render um bom personagem porque a maioria da população de Salvador é como Ray. As minhas primas, minhas tias são assim. Quando eu vejo ela, eu vejo Cristian Bell, Dum Ice e fico com saudades porque são essas pessoas com quem eu convivia”, conta Milena.Naquela altura, Ray já podia ser considerada uma influencer digital: tinha conquistado mais de 50 mil seguidores no Instagram e contava com assessor de comunicação. Ao entrarmos em contato, ela topou narrar ao colunista a resenha do dia da gravação e alguns detalhes da sua vida.

Na matéria que foi ao ar, Galdea a comparou com a personagem Capitu, esposa de Bentinho, o Dom Casmurro, da obra clássica de Machado de Assis, considerado um dos maiores livros da literatura brasileira. Até hoje, teses e mais teses seguem sendo escritas na tentativa de responder à eterna dúvida: Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

“A ideia de relacionar a história com a de Capitu me veio depois que entrevistei Ray e ela contou que a principal preocupação do povo era se tinha rolado ou não um ‘zig’ por parte dela. Achei que seria uma boa a comparação porque não faz muito tempo que ressurgiu a discussão se Capitu traiu ou não Bentinho”, explica Galdea.

Ao adotar a referência machadiana, o colunista não previu o que aconteceria. No Instagram do CORREIO, usuários consideraram uma ofensa colocar no mesmo patamar Ray, a periférica, e a emblemática Capitolina. Uma usuária chamada Ângela Márcia foi mais longe e, embora estivesse explicitamente no texto que se tratava da personagem de Machado, ela achou que a Capitu em questão era a da novela Laços de Família (2000), a prostituta vivida por Giovanna Antonelli. Essa confusão chegou até Ray, que também se magoou com o grande volume de comentários odiosos e, por dois dias, ela desapareceu do Instagram.

Leia artigo de Iraildes Andrade: ‘Raiana tem o direito de não dizer o que está fazendo e isso não tem a ver com traição’

Ao receber prints de alguns destes comentários, a bacharela em estudos de Gênero e Diversidade pelo NEIM/UFBA e coordenadora geral do Coletivo de Entidades Negras, Iraildes Andrade os decreve como sendo produto de preconceito e discriminação.

"Seria bom se os discursos fossem colocados em pauta e simplesmente assistíssemos e analisássemos se a mulher fosse sua amiga de trabalho, sua vizinha, se fossem pessoas que conversamos e gostamos. Tenho certeza que muitas pessoas têm amigas que gostam de dançar funk, pagode, quebradeira, paredão. As pessoas que criticam o poder feminino vão trazer isso da forma mais perversa", analisa.

Estudante de Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC (Ufabc), o youtuber Senhorita Bira, autor do canal de análises semióticas O Algoritmo da Imagem, explica que o vídeo de Ray Baratino viralizou porque tem a fórmula do meme: é orgânico, engraçado, curto e retrata uma sociedade muito específica, a baiana. “Além disso, mulheres pobres e negras, no Brasil, viram meme mais rápido, assim como gays e travestis. E é pela chacota. Você olha o Zorra Total, criador de bordões, e tem o Patrick da Faca, o Pit Bitoca, a Lady Katy pobre, ex-prostituta que teve caso com o senador. Transformam essa gente em piada”, expõe.Empoderamento? Numa passada de olho nas três redes sociais onde a matéria foi compartilhada, é possível ver que a maioria dos comentários incomodados com o uso do termo empoderamento partiu de homens. Ninguém parece ter reparado que o suposto ‘boy’ de Ray foi quem primeiro aplicou o baratino quando disse que iria buscá-la, mas não compareceu.

Em nosso Facebook, um leitor identificado como Jorge Oliveira teve um dos comentários mais curtidos com a seguinte mensagem: “Bacana ver que o Correio acha a postura dela como empoderamento. Legal ver que o destaque que ela está ganhando é baseado na mentira que está contando para o parceiro. [...] Se o que ela fez merece todos esses elogios, quando qualquer homem fizer, também merece", escreveu.

Conforme explica o colunista, a palavra empoderamento foi utilizada no título da matéria porque Ray se autointitulou uma mulher empoderada e também devido a um trecho em que ela diz que passou a ser procurada por outras mulheres, que têm lhe perguntado como fazer para esquecer os ‘boys’ que lhes dão baratino. Ao que ela responde assim:“Se valorize, meu amor. Se ele tá lhe dando baratino, dê baratino nele também. E se não quiser dar o baratino, dá o desprezo. Quando ele começar a te valorizar, aí que ele vai correr atrás de você, e vai ser essa hora que você não vai querer mais”. Também pelo Facebook, a leitora Pétala Hatzinikolaou ao ver o vídeo de Ray dançando e dando um perdido no peguete, discordou que a cena fosse sinônimo de empoderamento e comentou: “Se isso aí for empoderamento… Ridículo isso! E tem gente que ainda apoia e acha lindo”. Em conversa posterior com o CORREIO, ela expressou suas considerações sobre o que entende do termo: “Empoderamento feminino, para mim, é a mulher se independente. É ser livre para fazer o que quiser da sua vida. É saber se impor, colocar respeito e não deixar ninguém, tanto homem quanto mulher, te humilhar. É ser inteligente, ser profissionalmente realizada, destacada. Não precisar enganar homem nenhum, dizer o que está fazendo e acabou, sem medo do que ele vai fazer ou pensar, já que é dona da própria vida”, disse. A leitora argumentou que a mulher do vídeo mostrou-se “baixa” e que não acredita que ela é empoderada por estar enganando o homem e dançando uma música “de baixo nível”. Na entrevista dada ao colunista, Ray não negou e nem confirmou se existia mesmo um rapaz e se ela aplicou o baratino. Preferiu deixar no ar, para manter a resenha. Quando apontado o trecho em que a palavra foi usada na matéria, Pérola disse, depois, que não achou que foi mal encaixado e que ela mesma já chegou a descartar um boy que vivia lhe dando perdido.

“Inclusive, aconteceu comigo. Um carinha que eu estava ficando, e que depois virou meu namorado, começou com esses baratinos. Aí, eu dizia logo que não queria vê-lo. Eu disse isso e quando ele perguntou o motivo, eu disse que já estava ficando com outro. Depois desse dia, ele me pediu logo em namoro”, gargalha ela.

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Só lamentooo ????

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Mas, afinal, o que é empoderamento? O conceito de empoderamento surgiu por volta de 1970, nos Estados Unidos, a partir da eclosão de movimentos sociais de direitos civis, principalmente da população negra, que buscava a autovalorização da raça e o reconhecimento de cidadania, e só bem mais tarde começou a ser utilizado pelo movimento feminista.

O empoderamento é, para as mulheres, uma alternativa para que elas possam compreender as condições de subordinação em que são colocadas em relação aos homens e, assim, consigam refletir e promover um processo de rompimento de dependência econômica, física e de pensamento, para então mudar a estrutura social desta sociedade em que os homens têm mais privilégios.

Mestra em estudos sobre Gênero e Mulheres pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) e autora de O Que é Interseccionalidade, a escritora baiana Carla Akotirene explica que, do ponto de vista do feminismo negro, o empoderamento nunca é uma ação política individual. Se a ação política não consegue repercutir na comunidade e reproduz imagens que foram trazidas pelo patriarcado — da mulher negra como sendo a mulata, a trabalhadora do sexo, a mãe preta da casa —, as mulheres não conseguirão ser vistas como pessoas que têm desenvoltura em outros campos.“Por outro lado, criticamos o feminismo acadêmico, que diz que ser empoderada é algo que não tem a ver com a vivência comunitária. Quando eu, da academia, devo dizer para uma trabalhadora de uma comunidade como ela deve se comportar, estou sendo autoritária porque não existe uma forma de viver o corpo, a relação sexual e afetiva com os homens, isso tem a ver com os grupos. Então, acho legítimo que a comunidade de mulheres, como essa do vídeo, perceba que é importante, digamos assim, dar golpes no patriarcado, e entendi que foi simbolicamente um golpe que ela deu dentro do contexto cultural que ela vive, não dá para universalizar, mas dá para entender”, comenta.Mestra em políticas de atendimento às mulheres vítimas de violência e professora da UniFTC, a psicóloga Verena Souto explica que é comum ocorrer equívocos quanto à interpretação do que é empoderamento feminino, sobretudo quando as próprias mulheres associam o termo à reprodução de comportamentos ruins praticados pelos homens. A professora explica que as mulheres, por serem reiteradamente enganadas nos relacionamentos, acabam considerando empoderamento poder fazer o mesmo, dando o troco na mesma moeda.

“Quantas de nós não já passamos por isso? Mas quando a gente fala de empoderamento, estamos falando, principalmente, de igualdade de acesso a direitos, de independência financeira e política, de apropriação dos espaços e conscientização enquanto cidadã. A gente quer ter os mesmos acessos, segurança, poder de voz e espaços de liderança com os nossos esforços sendo recompensados na mesma medida que os homens”, justifica.

A psicóloga acrescenta que, embora os homens venham refletindo melhor sobre as suas posturas, a mera possibilidade de uma mulher ter dado um ‘zig’ ainda gera incômodo. Mas, quando são eles os sujeitos ativos, não há tantos problemas, a sociedade os tolera melhor. Apesar disso, dar um baratino num relacionamento pode fazer com que as pessoas deixem de ter responsabilidade afetiva umas com a outras, o que prejudica a saúde das relações, diz. Pesquisadora de comunicação digital e feminismo e também professora da Ufba, Graciela Natansohn indica que é interessante exercitar que, cada vez que estivermos diante de um episódio protagonizado por mulheres sendo julgadas publicamente, nós invertamos o gênero. “Se fosse um homem dançando um pagodão e mentindo para a mulher, seria notícia? Não, porque seria o comum. Então vejam o que está acontecendo com as mulheres. A notícia está justamente nessa diferença, no machismo”, desvenda. “O que pedimos é que parem de julgar as mulheres. Pessoalmente, acho que a mentira é um direito desde que não afete algo muito importante. Homens mentem o tempo todo para nós e nós é que temos que nos desconstruir porque eles não têm a intenção de fazer isso, não têm nada a perder. As mulheres é que têm muito a perder com o machismo e a falta de sororidade”, completa ela.Professora da Universidade Estadual da Bahia (Uneb) e pesquisadora dos estudos de gênero, a historiadora Vânia Vasconcelos indica que, para se empoderar, uma mulher precisa se juntar com outras mulheres, num movimento de reconhecimento de suas dificuldades e potencialidades. Ela observa que vem sendo crescente essa virada no Brasil, em que as mulheres têm formado coletivos e grupos de amigas organizados, que vêm lutando por demandas diversas.

"Mesmo que possamos considerar que o empoderamento individual é importante, que pode alterar situações específicas, é também essencial que o empoderamento se dê de forma coletiva para, de fato, questionar as estruturas de desigualdade", conclui.